A procura
Ela tinha borboletas desenhadas pelo corpo, eram asas eternas que ninguém lhe poderia podar. Tinha os olhos meio vesgos e enxergava tudo torto, como numa pintura impressionista. E ele tinha a ideia maluca de ir embora de vez, de cruzar as fronteiras do próprio mundo. Tinha um sonho e a necessidade de torná-lo real. Carregava tudo isso dentro do violão velho que levava consigo: era uma foto e uma carta sem assinatura, mais bilhete do que carta. Queria reencontrá-la, a menina ruiva que lhe sorria, a menina que ele beijava atrás da escola, de cujo nome não lembrava mais, mas sabia que estava escrito junto ao seu dentro de um coração numa mangueira no quintal de sua antiga casa... mas não fazia a menor ideia de onde ela poderia estar ou quem poderia ser. E se ela, de fato, tivesse partido? Teria dito para onde fora? Ele estava a caminho, mas nem ele sabia por onde procurar. O grande problema era que eles eram livres, ele não poderia nunca prender o coração da menina, era quase um acordo, e para isso teve de entregar seu próprio coração às tentações que a vida oferecia, era só assim que poderia garantir a liberdade que ela tanto queria. E lá estava ele experimentando novos caminhos, beijando outros lábios, tocando outros corpos, sentindo novos perfumes, sorrindo outros sorrisos e imaginando ela faria exatamente a mesma coisa. Isso doía. E o resultado era esse: não precisavam um do outro. Estava ali, sentado, tomando uma cerveja para aliviar o calor e tomando fôlego para seguir viagem. Já se passaram tantas estradas desde então e ele já estava na casa dos quarenta. Queria dizer-lhe que... já não lembrava mais o que iria dizer, o calor era tão grande que seus olhos espremidos pela claridade lhe deixava perder todas as possibilidades. Estava voltando ao ponto inicial, àquela cidadezinha interiorana de ruas tranquilas e crianças brincando de bola. Sabia que não a encontraria por lá. Mas quem sabe um golpe de sorte...? Voltaria porque era exatamente o último lugar onde poderia encontrá-la, era ao menos uma certeza, sabia que não estaria por lá o que de certa forma aumentava a possibilidade de que estivesse, afinal não contava com que, de fato, estivesse... é como quando só se encontra as coisas no último lugar onde se procura, aquele era o último lugar onde deveria procurá-la, logo o local mais possível de encontrá-la... mas, é claro, se não a encontrasse continuaria procurando, reduzindo a zero as possibilidades de que ela estivesse por lá, uma vez que não estava. Era, então, preciso agir depressa. O motor roncou seco como o vento do sertão e saiu levantando poeira até o asfalto, subindo estrada acima. Era hora de partir, dali a pouco seria noite e ele queria chegar a tempo.
(In Peregrinações)