O navio grego
- O meu ferro de passar era tão lindo...
- Quebrou-se, Vanelda?
- E então, mulher... quebrou-se!
- Ainda foi das coisas do povo do navio?
- E então...
Acho que não foi muito antes de 1960 quando o navio encalhou próximo à areia da praia, após chocar-se com os penedos do mar. Havia uma maré muito alta naquele bendito dia; enganosa maré de agosto quis que ele não prosseguisse rumo a nem sei onde.
O navio era de bandeira grega. Estava lotado de alimentos e utensílios.
A avaria que ele havia sofrido tinha conserto, sim. Apressaram-se alguns dos seus tripulantes e se comunicaram com o Recife. Poucos dias depois do acidente eles foram retirados do navio. As mercadorias, muitas delas, e a própria tripulação, também, foram retiradas do convés. Os homens seguiram viagem até a capital de Pernambuco. Lá haveriam de ser orientados.
A vida é mesmo interessante. Eu estava no posto de saúde da cidade, quando um jovem, moreno claro, fala alegre, descontraído dirigiu-se a mim e começou a falar sobre a história de Japaratinga . Fiquei curioso para saber. Falou-me sobre a história do encalhe do navio grego e sobre a cidade. Disse-me que Japaratinga significava “Arco Grande”, nome dado pelos antigos índios que descobriram o lugar e, quando o avistaram, assim chamaram a ponta do mar que lhes pareceu com um grande arco côncavo. Explicativo, ele relatou com carinho quase tudo o que sabia dos dois.
- Chamava-se Papanipolovo o navio. Era imenso. Nós, aqui em Japaratinga, nunca havíamos visto nada parecido com ele. Um navio bonito trazia consigo, em suas dependências, uma gente cantante e alegre, viva, mesmo!
Disse-me aquele jovem que tudo o que me relatou realmente havia acontecido. Eu acreditei!
É comum chegar nas casas dos habitantes da cidade e encontrar algum objeto ganho por algum de seus familiares, à época em que o navio encalhou. A tripulação foi muito generosa com o povo, presenteando-o fartamente.
- Mamãe ainda possui um rádio grande, doutor.
- Bonito? perguntei a ele.
- Grande e colorido. Pega as rádios todas. Ela, após usá-lo, cobre-o com um pano limpo, flanelado, com todo o cuidado do mundo para que ele não sofra avarias. O senhor sabe, né..., essas coisas do estrangeiro, e principalmente gregas, devem ser de difícil conserto.
Enquanto o jovem falava, eu acenava afirmativamente com a cabeça, como se quisesse consolidar seu discurso alegre, cheio de sua alma.
Nem precisava muito puxar por sua memória. Parecia saber tudo de cor. Pareceu-me ser um contador de histórias nato. Era noitinha já, quando iniciou o seu relato histórico e cultural. Eu estava interessadíssimo.
De repente o carro parou na porta do posto de saúde e eu o deixei sentado no banco grande da recepção e corri para atender a vítima. Infelizmente estava morta. Quando eu olhei para trás, meu olhar encontrou o olhar do jovem contador de histórias e enxergou nele lágrimas abundantes. Por que ele chorava?
- Doutor, esse senhor era a única pessoa em Japaratinga que sabia tudo sobre o Papanipolovo. Que pena! Agora só resto eu...
- Entendeu então que a sua importância social aumentou?
- Ainda não me caiu a fichinha, doutor.
- Pois é!
Liberei o corpo após assinar o atestado de óbito e fui consolá-lo. Havia dentro de sua alma um outro navio triste encalhado, enlutado, necessitando de um forte abraço meu. Fi-lo também entristecido e levei-o até a porta principal do posto. Para minha alegria maior, encontrei, certo dia, acho que dois anos após a morte do senhor Olvidio, no posto de saúde, um livro do Ademário, na única banca de revista da cidade.
Trazia no título: O Papanipolovo! Comprei-o, era o único exemplar à venda. O dono da banca me disse que, só quando vendia um exemplar, era que o autor trazia outro e repunha.
Este conto eu o fiz para homenageá-lo. Não sei se algum dia ele o lerá. Se não, o farei por ele quando minha saudade descortinar a memória e eu viajar em pensamento até Japaratinga e encontrar as cores maravilhosas de seu mar.