Programação espiritual
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, 26 de novembro de 2015
Alberto era um jovem tímido e bastante desconfiado. Recém-formado, fora convidado a trabalhar em uma cidade da região metropolitana de Salvador, como controlador de qualidade em uma fábrica de automóveis, também recém-instalada, que tinha como diretor financeiro um tio seu.
Ambos procedentes da grande metrópole paulistana, pela primeira vez estavam trocando a bela, charmosa e movimentada Avenida Paulista, onde trafegam mais de 1,5 milhão de pessoas diariamente, pela Avenida 28 de Setembro, nome dado em homenagem à fundação da cidade. A escolha da montagem da fábrica levou em conta os incentivos fiscais do governo central, estadual, a doação do terreno, o não pagamento de impostos municipais por quinze anos, pelo seu Polo Industrial e por ela pertencer à região metropolitana de Salvador. Como garantia, a fábrica oferecida à cidade, a geração de 1000 empregos diretos e outros tantos indiretos.
O tio trouxera família, mulher e dois filhos. Alberto veio sozinho, mas não cogitou morar com os familiares, queria liberdade, alugou uma casa medianamente confortável, longe do tio, mas bem próxima à fábrica.
Os primeiros dias e meses foram bastante chatos, só conhecia os companheiros de trabalho, muitos deles casados e outros tantos não ganhavam o suficiente para frequentarem bares e restaurantes, nos finais de semana. Aos domingos ele dava um pulo até as praias de Arembepe, distante 40 km, pois gostava de praia. Só voltava ao anoitecer.
Depois de quatro meses nessa vidinha, resolveu investir na cidadezinha, conhecer seus ambientes noturnos, bares, boates, bailes etc. Meio sem jeito, entrava nesses lugares timidamente. No Bar Holiday, agora o seu preferido, sentia-se mais à vontade, por causa da música ao vivo, um violão e uma bela garota cantando. Sentava-se sempre à mesma mesa e sozinho. Pedia cerveja, bebida que apreciava muito e permanecia até quando quase não tinha mais ninguém. Seu comportamento nunca se alterava com a bebida.
Certa noite de sábado foi ao clube da cidade, a convite de um colega de trabalho. Lá, encontrou a garota que cantava no Holiday, quando havia festa no clube o bar fechava cedo, pois a frequência caia quase a zero. A sua presença animou o rapaz, pois já sentia afeição pela garota. Ele via ali a oportunidade de se aproximar dela e, quem sabe, tirá-la para dançar e conversar. Procurou saber se o amigo conhecia a garota e a resposta foi negativa. Atentou para saber se ela estava acompanhada com algum rapaz, um namorado, talvez; três moças e um casal de idosos em sua mesa. Um largo sorriso tomou conta de sua feição. Agora só faltava a coragem de ir ter com ela.
Seu olhar insistente chamou a atenção da garota cantora, um rosto familiar para ela, que muitas vezes vira no Holiday, sempre sozinho e retardatário. Muitas vezes só estavam ela, a cantar, e ele, a segurar um copo de cerveja e a fingir que estava bebendo. Ambos trocaram um curto sorriso, mas isso bastou a Alberto, para que a coragem tomasse conta de atitude. Levantou-se e foi em direção à mesa da moça.
— Boa noite, posso sentar-me? - Perguntou ele sem muita confiança.
A garota, que não havia notado a aproximação do rapaz, assustou-se e, confusa, olhou para o casal de idosos como se estivesse pedindo consentimento. Um sinal discreto com a cabeça, do idoso sentado do seu lado oposto, foi a resposta. Arrastando uma cadeira vazia em direção ao moço, ela acenou que sim. As amigas da moça se afastaram um pouco, como para deixar os dois mais à-vontade. Os dois conversaram muito, perguntas triviais foram feitas: seus nomes, quem são os idosos etc. e, finalmente, vamos dançar? Os dois dançaram a noite toda, riam dos passos errados, pois Alberto não era bom de dança, principalmente no samba. Foi uma noite divertida para os dois e outro encontro ficou marcado para o dia seguinte. Em três meses estavam namorando sério.
— Rolou uma química, como dizia Alberto, para alguns companheiros de trabalho.
Passados outros meses mais, Alberto e Janaina, cada vez mais próximos, foram visitar, a convite dela, um terreiro de candomblé, que recebia turistas, o povo de santo e demais seguidores para a sua festa anual. Ao chegarem ao local, o casal foi recebido festivamente pelo zelador do santo local, também conhecido como babalorixá. O moço estranhou, pois não sabia da aproximação de Janaina com aquele homem trajando multiplicidade de elementos: abadá (blusa), xocotô (calças), ojá (pano na cabeça), saias, filá (estilo de chapéu), turbantes, adê e conta. Percebendo a desorientação de Alberto, Janaina confidenciou ao namorado que aquele homem era amigo de sua família, que frequentava aquele terreiro.
Sem esboçar reação, o moço acompanhou a namorada e ambos foram sentar-se em uma arquibancada montada para os turistas admirarem a beleza da festa que seguiria. Homens e mulheres, todos e todas de branco, a cantar, a dançar e a rodar em torno de um centro e em torno de si mesmo, freneticamente, e ao som de tambores, cabaças e agogôs, impressionavam pelo malabarismo de alguns dançarinos, que Alberto veio a saber, posteriormente, estarem recebendo santo. O som e aquela alegoria estavam deixando o moço perturbado, com a sensação de que também iria entrar em transe.
— Vamos embora, não estou me sentindo bem, falou o rapaz. Um pouco contrariada a moça concordou, saíram e foram procurar um lugar arejado.
— Só podemos ir para casa depois que isso acabe, só depois das 24 horas. Temos que esperar os meus pais deixarem a dança, falou firme a garota. O rapaz não tinha notado que os pais dela estavam ali, a dançar. Constrangido, ele perguntou:
— Eles recebem santo? Você recebe santo? A resposta foi uma gargalhada e uma frase seca:
— Não! Eu não sou filha de santo, mas respeito, não sou adepta do candomblé, só meus pais - completou ela, com o intuito de não deixar dúvida.
Ao final de todo aquele ritual, os pais de Janaina, agora em vestimentas comuns, se aproximaram da filha e se dirigindo ao Alberto, a mãe falou:
— Este e o senhor Peixinho, o babalorixá, deste terreiro. Alberto olhou admirado para o homem, que ainda permanecia paramentado e, sem dizer o seu nome, exclamou:
— Prazer! Eu nunca tinha participado de uma festa como esta, foi realmente impressionante.
— Você é o Alberto, paulista e que veio trabalhar na montadora de automóveis, não é mesmo?
Atordoado, o moço balançou a cabeça, afirmativamente. Como é que ele sabe meu nome, pensou. E detalhes de minha vida? Será que estão preparando algo para mim?
Percebendo-o mudo e pensativo, Janaina procurou tirar o namorado daquela roda de conversa não muito agradável para ele.
— Vamos pai, vamos mãe, Alberto via trabalhar muito cedo amanhã. O turno dele começa às seis horas.
Depois das despedidas, todos se dirigiram ao carro de Alberto, que permanecia mudo e pensativo. Ao chegarem à casa de Janaina, ela, mais do que depressa confidenciou:
— Amanhã falaremos sobre a noite de hoje, não fique preocupado com o que você viu e ouviu. – Beijando o namorado na face, ela se afastou do carro para que ele partisse.
No outro dia, depois das explicações fornecidas por Janaina, Alberto compreendeu o propósito dela em levá-lo ao terreiro de candomblé – foi apenas para distraí-lo e não havia, da parte dela, intenção nenhuma em comprometê-lo. Apenas a mãe dela, como ele já presenciara, falava muito e, por certo, havia passado a ficha dele para o amigo, senhor Peixinho.
Dois anos depois eles se casaram e formaram uma linda família.