RE:
então, os vácuos cotidianos podem ser melhor percebidos ao observarmos atentamente o caleidoscópio lendário do tempo. nele, enxergamos que acontece de, por exemplo, se repetirem sucessivamente meses de junho sobrepondo-se a outros, mas desaparecem alguns dias, um dia qualquer de dentro do mês, vinteoito, talvez. e não sentimos isso no dia-a-dia. mas você tem razão quando diz que os dias não são iguais. tenho me doado o luxo de tomar uns cafés. o primeiro é que foi o melhor. deixei-me ser o próprio banco da praça, e pracei, enquanto a praça, como sempre, dormia. aos poucos brotou ao meu redor uma árvore-café, objeto por objeto, até ficar tudo completo. o que eu posso dizer é que o cheiro entrou vivo em mim, irresistível. o garçom, de fraque, pousou ao meu lado: "o que você deseja hoje?" "um café, por favor", e ele disse me olhando com aqueles olhos que estrapolavam a órbita da cabeça "eu sei. mas o que você quer hoje?". fiquei sem reação por algumas frações de tempo, e ele saiu. antes de entrar no recinto parou bruscamente e voltou a cabeça com os olhos pra mim, daquele jeito habitual que olham as corujas, deteve-se, e se foi. eu duvido muito que existe um café melhor que o que bebi ali. simplesmente aguçava o sabor da visão para onde eu dirigia as íris. dei o último gole com a tradicional espiada no fundo da xícara, e na borra ficou escrito
a água o pó o pé
poesia
é o próprio café
fiquei bestializada, porque era quase isso que estava pensando enquanto degustava-o. retornei lá no mais breve acaso que pude criar. tudo do mesmo modo, em princípio. pensei em várias coisas pra responder ao garçom após a pergunta "o que você deseja hoje?" "um orgasmo, por favor", estava dentre as mais preestabelecidas automaticamente, mas ele pousou e disse "um café?". eu, desconcertada, disse que sim, ele trouxe sem maiores atuações. neste momento pedi a ele: por que não me perguntou o que eu desejava hoje? - "porque hoje você veio querendo apenas um café".
agá pe