Meia-volta, volver

Burburinho musical, som de baqueta batendo em um prato metálico e estridente, guitarra em lá, baixo afinando, um, dois, teste no microfone. Tarde de ensaio de uma de mais uma dessas bandas de igreja, a “mensageiros do senhor”. Porque diabos toda banda gospel tem esses nomes bregas? Sem falar nos trajes das backing vocals, o que era aquilo? Me senti de volta aos bufantes e sedosos anos 80, tamanho brilho e ombros em formato de balão de gás vestidos pelas garotas cantantes. Bem, fazer o quê? Sobrou pra mim a pauta das bandas evangélicas, o jeito era assistir o culto, fazer as fotos, uma entrevista com os músicos e editar o material pra revista. Tava sentado lá, jogadão mesmo, quase cochilando na poltrona do auditório. Foi num bocejo desses, de tédio e cansaço, que virei a cabeça pra esquerda e vi, através da abertura de uma porta, dois engravatados contando dinheiro. Muita grana! Disfarçadamente, fui pra perto da porta, mas com todo o cuidado, para não ser notado. Nessas cagadas do destino, a banda resolve fazer um intervalo. Foram pro refeitório, largando os instrumentos no chão, displicentemente. Se não fosse pelo que tinha visto, tomaria nota que os músicos da “mensageiros” são tão posers quanto qualquer outro aspirante a rock star. Perto da porta, respiração controlada para ouvir tudo. Liguei o gravador do voz do mp3 para tentar captar alguma conversa, na esperança de algum furo de reportagem. Lá dentro, uma conversa descontraída. Falavam do culto de logo mais, do calor escaldante que fazia lá fora, dos planos pro fim de semana. Uma conversa comum, dessas que se ouve em ônibus, esquinas, mesinhas de bar. Mas alguém falando em cento e vinte mil reais é algo pouco comum. Pra bolsos comuns e pra conversas de assalariados, autônomos e outros simples mortais que formam a base da pirâmide social. Cento e vinte mil? Cash? Estiquei o pescoço e vi, ah, vi com gosto aquele bolo de grana. Notas de 10, 20, 50 reais, embaladinhas em montes, a coisa mais linda de se ver. Máquina fotográfica em punho, 6.0 megapixels, flash desligado, zoom no máximo. Tirei umas 20 fotos daquela pequena fortuna. Nem sei o motivo que me levou a fotografar a dinheirama, talvez mero impulso, tique de jornalista. Tentava me aproximar mais da porta quando lá no palco alguém acena: a gatinha de cabelo amarrado,a única gostosinha do grupo, me chama para a entrevista. Danny, seu nome, confirmo nas minhas notas. Pego minhas coisas e me dirijo ao local da entrevista. Gravador em punho, disparo as perguntas, mais preocupado com o que acontece na salinha da grana.

- Olá, Danny, Prazer. Sou o J. Garcia, da revista Opinião. Vamos começar. Você sempre tocou em banda gospel?

- Desde que entrei para a igreja sim....antigamente não era desta religião e tocava em bandas de Rock....

- O que te fez mudar de estilo?

- Encontrei a Cristo e vi que vivia em um mundo passageiro, bêbada e com sono....

- Antes de sairem pro intervalo, notei que largaram os instrumentos assim, sem muito cuidado...uma atitude bem rock and roll, não acha?

- Deus fez cada um e um jeito, cada um com uma personalidade, e ele não quer que deixemos de ser quem somos e sim que passamos a ser melhor do que éramos. Amo o Rock e meu estilo é esse. Passe o tempo que passar.

- Vocês ganham bem aqui?

- Nós não ganhamos nada... fazemos isso por amor a Musica e a Deus.

- Como faz então pra pagar suas contas?

- Trabalho, não vivo apenas da igreja

- Posso saber em quê?

- Sou produtora musical.

- E a igreja, arrecada muito?

- Isso não saberia te informar, só sei que cada um cumpre com sua parte....no dízimo.... e que se arrecada ao mesmo tempo ajuda a quem necessita.

- E se eu te disser que naquela salinha alí tem dois "obreiros" contando 120 mil reais...isso mudaria algo?

- Não... a mesma coisa acontece no Brasil e ao invés de 200 membros, são milhões de habitantes... e não muda nada pra ninguém.... assim como pago meus impostos e o governo não me beneficia em nada, pago meu dizimo não esperando nada em troca, apenas o sentimento de alma tranqüila e obrigação cumprida.

- Bem, eu fotografei a grana...Lá dentro tem mesmo 120 mil reais...

você não fica tentada?

- Não.... sei que no banco central há Milhões de reais e não me sinto tentada a roubá-lo.

- Uma roqueira de princípios...eu sou um jornalista que não acredita mais em muitas coisas. se eu pudesse, levaria tudo.

não se preocupe, agora é em off, a entrevista acabou.

- Creio que se você roubasse o dinheiro não dormiria em paz.

- Certo, Danny. obrigado pelas informações.

Tinha a entrevista, as fotos, era correr pra redação, montar o texto e mandar pro editor aprovar. Ao invés disso, vai pra casa. A namorada, uma bela webdesigner, preparava uma macarronada ao sugo, que já infestava o corredor do prédio com seu aroma sedutor. Antes que ela perceba, Garcia a pega por trás na pia, enlaçando-a na cintura e beijando seu pescoço.- Pára, amor...ela sussurra, de olhos fechados, enquanto os beijos sobem para os ouvidos, face, até encontrar os lábios que ela oferece, lânguida e quente. Já tinha tomado um cálice de vinho seco, adorava vinho com massa. As mãos deslizavam no corpo um do outro, e lá estavam os dois, seminus, fazendo amor na pia da cozinha. Aquelas rapidinhas deliciosas, nos lugares mais inusitados possíveis. Ainda ofegante, J sussurra no ouvido da namorada: - Quer ficar rica? Ela, ainda entorpecida do vinho e do gozo, sorri de olhos fechados, abraçada a ele. –Ganhou na loteria, é? Pois com o dinheiro que ganhamos com frila, só na terceira geração.

- Olha só, mandy...eu sei como podemos ficar ricos. Cento e vinte mil! Estão lá, no cofre daquela igreja evangélica que fui fazer uma matéria lembra? Então, não tem erro e...

- Espera aí. – disse Amanda, afastando-se do namorado. O tom da voz da webdesigner já era outro, ela não entendia bem o que ele queria com aquele papo. – Vai virar pastor e extorquir pessoas, querido?

- Mandinha, que pastor! Eu sei como tirar 120 mil de lá, gata. Facinho!

- Mandinha o cacete! Ficou louco? Na boa, mané, você escolhe: ou eu ou esse planinho meia boca de ficar rico da noite pro dia. E depois que comer, lava a louça, que eu perdi o apetite. - E saiu, batendo a porta.

Garcia nem come, sai em seguida, mas não consegue alcançar a moça. Volta ao apartamento, troca de roupa e se prepara para a estréia no mundo do crime. O primeiro furto. Primeiro e único. Mas agora ele tinha dois problemas: Danny e Amanda. Quando dessem pela falta da grana, uma das duas poderia muito bem denunciá-lo. Se bem que com a baixista foi mera especulação, mas tinha dito com todas as letras para a namorada que pretendia lesar o pastor. O plano era simples: esperar a igreja fechar, torcer para que a grana estivesse lá e agir. E foi consumar o fato.

Dentro de seu velho carro, na rua da igreja, uns 200 metros á frente.Esperar a hora certa. Era o que devia fazer. Mas qual a hora certa? E o que fazer quando a tal hora chegasse? Como saberia o momento? Será mesmo que a ocasião faz o ladrão? Arrependeu-se de não ter agido naquela hora, naquele exato momento. Devia, ter agido no impulso, levado na mão grande mesmo, caralho – culpava-se. Se arrependeu de ter comentado, insinuado algo com Danny, a baixista da banda. E, besteira maior, ter falado, pedido a opinião da Amanda. Logo ela, tão certinha, tão honesta, daquelas que devolvem troco a mais, que odeia a lei de Gérson, aquela que enaltece a vantagem acima de tudo. Cagada maior: ela não o perdoaria. Por uma ambição desmedida, por crescer o olho em algo que não era seu, tinha colocado em jogo uma relação, além de sua reputação. Fora o trabalho, que já não era fixo, mas já tinha perdido o prazo para entregar a matéria na redação. – Queimei o filme bonito, pensou, com a cabeça encostada no volante do carro. Ligou o rádio, Charlie Brown Jr:

Desempregado e falido

Andava pela rua largado e fudido

Achou na rua uma carteira recheada de dólar

Acabou-se a miséria

Foi-se o tempo da esmola

Ironia do destino? Um aviso, um sinal? Mas que tipo de aviso era aquele? Vai em frente ou larga essa idéia? Afinal, sempre lhe ensinaram que “o crime não compensa”. Mas não era bem isso que acontecia em Brasília, onde todos os crimes valiam a pena. Mas ali, dentro daquele carro velho, desempregado e falido, não era Brasília. Sorriu. A ficha caiu. Ele, de fato, se sentia um babaca. Pobre, fudido, mas livre. Isso era o que mais importava naquele momento. Liberdade, ir e vir, ser o dono do nariz.Ficou com aquela cara de alívio estampada no rosto. Quase tinha feito uma grande merda. Suspirou, pensou em Amanda. Quem sabe ainda era tempo de reconquista-la. Deu a partida, meia-volta, volver. Recomeçar.