"Tragédia burguesa"

Ontem, quando passeava com F no parque, eu o vi dentro do carro. Ele fingiu que não me via. Se eu não o conhecesse, obviamente acreditaria naquilo que ele me disse certa vez"__ Não procuro mais chamar a atenção. Mesmo que procurasse, seria tarefa difícil e cansativa para alguém que entre outros maiores defeitos possui uma barriga enorme, uma careca acentuada e um mau hálito crônico. Apesar disso, amo e odeio o que sou, de forma que desejo não ser notado mais por vergonha do que por modéstia. Fico aqui, de longe, em premeditada distância, garota".

Descarado! Igual a todos os safados dos "sem- desejo", ele beliscava minha bunda, apalpava meus seios e fazia gestos obscenos com a língua. A mesma língua que lambeu incontrolavelmente a maçaneta da porta do quartinho no dia em que dona Dalva flagrou o safado aprontando mais uma de suas extravagâncias libidinosas. Entre juras e protestos, chiliques e palavrões, ela garantiu que buscaria a liberdade de espírito de poder viver sozinha. Antes, porém, jogou-lhe uma praga do tipo: "__ Velho imoral, tomara que seu pinto caia, antes de murchar....você pensa que eu não sei? A garota contou-me tudo, inclusive que você pediu para ela ficar por baixo, por que a magreza dela o machucava!!"

Tudo leva a crer que fui despedida por isso, não antes de curtir com F a piscina dos bacanas, em um domingo de manhã, quando seu filho veio buscar os velhos para um passeio no sítio. Gente boa esse filho deles (um tal de Deva). Ele gostava de se reunir com os amigos às sextas-feiras para comentar coisas tais como: "__ Adoro sentir toda a potência do motor na sua força rouca e breve, sabe? Dirijo melhor nas curvas. É como se andasse em círculos. Os trezentos cavalos do motor parece fazer justiça aos tantos-e-não-sei-quantos homens que trabalharam oito horas de algum dia para fazer essa máquina. Às vezes, penso que ela está sempre na iminência de vingá-los. Vê se pode? No momento seguinte, a pista longa, infinita, surge à minha frente e põe fim aos meus medos".

Eu curtia ouvi-los falar, principalmente quando diziam se contentar com pouca coisa, no entanto, só com o melhor. Então,eu varria e desvarria a calçada para ouvir o zumzumzum dos caras. Um deles, o mais moço, em algum momento se dirigiu aos outros em tom de piada, afirmando que talvez, apesar de tudo não era muito feliz, ao que todos juntaram a uma só voz: "__ Existe alguém feliz? "__ Não!", o boyzinho concluiu "__ Mas, parece que algumas pessoas fazem um esforço constante para isso". Todos concordaram e, de comum acordo, elegeram o pai do Deva como representante fiel desse tipo de pessoa."__ Veja!" Um gordo de bermuda dizia "__ O Péri, sessenta e cinco anos, corre no calçadão e toma viagra! Não é mesmo, Deva!?" A conversa sempre girava em torno de sexo, soníferos e outras drogas, culminando no Khama Sutra, política externa e yoga, até ser interrompida por dona Dalva que aparecia carrancuda, trazendo na mão direita uma gaiola com um melro e, na mão esquerda, uma mangueira para lavar a calçada.

Dona Dalva era correta, corretíssima. Ainda hoje recordo-me daquele dia em que ela discutiu com seu Péricles. Eles estavam na varanda; eu , na sala de estar espanando os móveis. Ouvi- a comentar algo como:"__ Eu estive lá com você naqueles dias turbulentos, correndo nas ruas, lutando contra a ditadura". Seu Péricles concordava com um meneio de cabeça e dona Dalva continuava: "__ Em tempos de paz recitamos juntos, até noite virar dia, os sonetos de Shakespeare". Deve ter sido uma ilusão, mas acho que o velho Péricles chorava, pois sua voz adquiriu uma tonalidade estranha e amargurada: "__ A liberdade é importante para nós, Dal!! Shake foi importante para nós, Dal! Mas, e agora? O que é importante para nós? Deva, o filho dos nossos sonhos? Ele está se lixando para nós e para o curso de Direito".

Antes de ser despedida ainda pude ouvir outra conversa dos dois. Dessa vez eu estava escondida com o ouvido colado na parede do quarto. Entre soluços e suspiros eu ouvia dona Dalva repetir incansavelmente: "__ Força é mudar de vida,meu velho; liberdade é querer mudar". Após essa fala, não ouvi nada por vários segundos, apenas o abrir da porta, o que me fez abandonar imediatamente a casa.

Poucos dias depois F e eu pedalávamos nas imediações do bosque, quando avistamos ao longe um casal de idosos caminhando de mãos dadas. Ele trazia numa das mãos uma gaiola vazia; ela - ao que nos pareceu - trazia um ramalhete de flores silvestres.

make
Enviado por make em 29/06/2007
Reeditado em 04/01/2017
Código do texto: T545518
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