O Castigo
Orlando era um belo rapaz, por dentro e por fora. Era um cidadão de princípios rígidos. Seus conceitos de vida estavam fora dos padrões dos tempos atuais. Para ele tanto o homem quanto a mulher só deviam praticar sexo depois de casados. O sexo sem a benção de Deus era um ato, sujo, imundo, um pecado mortal. Considerava o beijo na boca uma excrescência. Um nojo. Uma troca de micróbios e bactérias. O adultério era pecado que jamais poderia ser cometido pelo cônjuge.
Nunca vira o corpo da sua esposa desnuda, muito menos permitia que ela o visse sem roupa. A nudez para ele era um ato de licenciosidade. Não transigia com traidores, mentirosos, cínicos hipócritas. Era educado, fino, gentil, casto, amante da verdade. Nunca fora pego falando ou praticando uma inverdade. Não bebia, não jogava e muito menos fumava. Além de possuir todas essas virtudes, era muitíssimo bem empregado. Trabalhava numa multinacional, como vendedor – viajante, e segundo se dizia a boca pequena, tinha um belíssimo salário, um homem perfeito. Graças a sua profissão passava a maior parte do tempo viajando, fora de casa.
As mulheres do bairro tinham opiniões diferentes a respeito do seu modo de vida. Uma grande parte, o achava um grande imbecil, um idiota. Já outra parte suspirava por ele.
Orlando era casado com Leonor uma mulher virtuosa, religiosa ao extremo que dividia a sua vida entre a escola primária, onde trabalhava como professora e a Igreja. Fazia parte do grupo das filhas de Maria e não perdia uma missa por nada desse mundo.
Dentro desse contexto, Orlando e Leonor formavam perfeito. O casamento dos dois era mais puro do que um lírio do campo.
Orlando achava o recato da esposa admirável, principalmente nos tempos modernos, onde as mulheres estavam muito liberais para o seu gosto. Exatamente por ter o amor de Leonor, uma mulher de princípios, se achava homem mais sortudo do mundo. Leonor por sua vez, também nada tinha a reclamar, já que Orlando era um poço de virtudes. Uma figura excepcional. Talvez o último homem honesto da face da terra. Não restava a menor dúvida que tinham nascido um para o outro. Viviam num mar de rosas. Numa felicidade eterna. Suas vidas era um verdadeiro conto de fada.
Depois de uns dias de descanso, sem nenhum compromisso profissional, onde pôde desfrutar da companhia da amada, Orlando se preparava para mais uma viaje de negócios. Como sempre fazia nessas ocasiões, passava os seus últimos momentos lazer, antes de viajar ao lado da esposa. Na verdade nesses momentos que antecedia a sua partida, a saudade da mulher amada, se apossava do seu coração, como um posseiro, se apossa da terra devoluta e passa a cultivá-la.
Ao entrar no ônibus que o levaria ao seu destino, uma surpresa o aguardava. Encontrou Coelho, um velho amigo dos tempos de colégio. Há anos que não se viam. A vida tinha se incumbido de separá-los levando cada um a percorrer caminhos distintos. Aquele reencontro foi um achado, pois a viaje seria longa, e cansativa e nesse caso, nada melhor para distrair do que um bom papo, entre amigos que não se viam há longo tempo. Depois das primeiras emoções pelo reencontro e das frases de praxe, começaram a conversar, relembrando fatos passados de um tempo feliz que se foi e não volta mais. De imediato, Orlando percebeu que o seu amigo mudara muito. Já não era o mesmo rapaz dos tempos colegiais. Estava muito diferente daquele garoto ingênuo, puro, amigo incapaz de um ato menos indigno. Mudara a sua forma de pensar, e de agir. Bastou alguns minutos de conversa para avaliá-lo como um canalha, um pulha. Coelho deixara a maldade entrar no seu coração contaminando a sua alma. A canalhice estava escrita na sua testa.
À medida que o tempo ia passando ambos iam deixando aflorar suas idéias, ambições, sonhos e desenganos. Foi assim, que Coelho tomou conhecimento que o amigo nunca vira o corpo desnudo da sua esposa. Que jamais trocaram um simples e inocente beijo na boca. Ficou ainda mais horrorizado, quando Orlando lhe confidenciou que se casou virgem e que jamais tivera algum relacionamento fora do casamento. Que nunca traíra a sua esposa nem em pensamento. E por isso nem passava por sua cabeça cometer um traição ato dessa natureza. Nesse ponto o canalha explodiu numa estrondosa gargalhada chamando a atenção dos outros passageiros.
Ainda incrédulo, diante da confissão do amigo, Coelho resolveu mostrar ao companheiro, o outro lado da vida. Muito mais experiente e vivido, começou a fazer a cabeça do tolo que embevecido com as suas histórias foi aos poucos mudando certos conceitos, que pelo visto, não eram tão arraigados no seu espírito. Quando chegaram ao destino, depois de horas e horas de lavagem cerebral, Orlando era outro homem. Suas idéias a respeito de fidelidade, casamento, pureza de sentimentos tinham se transformado. Começou a pensar que sua vida era de uma mesmice atroz. Uma monotonia sem fim. Não havia um pingo de emoção. Começou a desejar do fundo da sua alma, do fundo do coração, em mudar, aproveitar a vida naquilo que ela poderia lhe oferecer de melhor, afinal só se vive uma única vez. Coelho, o pulha, tinha alcançado o seu objetivo. Tinha plantado o mal na alma e no coração daquele outrora correto Orlando.
O carnaval se aproximava. As idéias e as experiências de Coelho sobre a festa o fascinaram. Orlando estava muito a fim em conhecer e aprender sobre aquele folguedo. Assim, quando retornou da sua última viaje,Leonor o achou muito estanho. Seu sexto sentido de mulher apaixonada assinalava que algo tinha mudado. Orlando se esforçou muito para demonstrar que era a mesma pessoa, que nada mudara. Que continuava a ser o mesmo homem de sempre. Um homem reto, digno, sobretudo, fiel aos seus princípios e a sua esposa. Essa sua atitude convenceu definitivamente a sua mulher.
Na semana da festa carnavalesca, Orlando anunciou uma nova viagem, coisa de última hora que não estava programado. Era um caso de urgência. Um caso de vida ou morte para a firma. Leonor com a sua compreensão de sempre, não colocou um único obstáculo, embora deixasse transparecer uma ponte de tristeza pelo inesperado. Orlando prometeu voltar depois da quarta-feira de cinzas. Leonor então deixou transparecer todo o seu afeto, toda a sua enorme compreensão diante daquele fato. Ela sabia que era para o bem deles mesmo. Era o futuro do casal que estava em jogo e nessas circunstâncias só lhe restava resignar-se. Afirmou que longe do esposo, faria à mesma coisa que fazia nos anos anteriores, ou seja, faria retiro espiritual com a sua congregação.
Na sexta-feira, praticamente quando começava os folguedos, Orlando e Leonor, se despediram como um forte abraço e com lágrimas nos olhos, prometendo-se mutuamente que logo, logo estariam juntos. Ele partiu rumo ao seu destino. Ela para o seu retiro espiritual. Só que desta vez, Orlando desembarcou na residência do distinto amigo Coelho que já o aguardava com uma fantasia de carrasco e convites para brincarem no baile dos “Cornélios” no Clube dos Democráticos, ali na Lapa.
Nessa sua estréia na folia, Orlando saiu-se maravilhosamente, parecia um veterano. Totalmente coberto pela fantasia, nosso herói, parecia querer recuperar o tempo perdido. È verdade que de quando em quando, uma ponta de remorso aflorava em seu coração. Pensava na mulher, naquele momento fazendo retiro espiritual, enquanto ele, ali na gandaia. Mas logo a seguir afastava segundo ele esse mau pensamento para se render aos encantos do “Rei Momo”. Orlando estava fascinado. Nunca viu tantas mulheres lindas juntas e o que era melhor todas disponíveis.
Assim foram os dias subseqüentes. A cada dia uma nova mulher. A cada nova mulher uma nova emoção. Na 3ª feira, último dia folia, o deslumbrado Orlando conheceu uma mulher fantasiada como ele de carrasco, dona de um corpo belíssimo, mas que se recusava a mostrar o rosto. Para tornar a relação mais excitante propôs um jogo. Só se descobririam no momento certo, ou seja, quando estivessem no hotel. Ali, naquele momento, mostrariam suas faces. Embevecido, Orlando aceitou jogo de cara. De vez em quando, batia em Orlando uma observação. Havia qualquer coisa naquela mulher que lembrava Leonor. Sua maneira de olhar, andar, seu corpo. Tudo lembrava Leonor. De repente um pensamento, povoou sua cabeça. E se mulher fantasiada fosse Leonor? Não. Leonor não seria capaz de uma atitude dessa. Achando essa idéia absurda, Orlando sapecou mais um beijo na boca da mulher, e juntos caíram na farra. À noite foi bastante divertida. Finalmente quando o baile terminou o casal entrou no primeiro hotel que encontraram. No quarto, Orlando admirava o corpo esplêndido daquela mulher. Nunca vira formas tão bem delineadas, tão bem feitas. Aliás, olhando melhor até que havia algo de familiar. .
Conforme o combinado, Orlando foi o primeiro a se despir. A mulher gostou muito do que viu. Finalmente começou a tirar lentamente a roupa. A cada peça de roupa, que ela tirava vagarosamente, causava um enorme frenesi. Quando finalmente tirou a última peça, Orlando soltou um grito de espanto. Ela na verdade, não era ela. Era ele. Horrorizado Orlando desceu a escadaria do hotel, quase nu gritando:
- Castigo. Castigo de Deus. Deus castigou a minha traição.