Ossos do ofício
Eram pouco mais de oito horas da manha quando o oficial de justiça Antônio Uchoa chegou ao local designado. Acompanhado por um policial, ele se dirigiu ao oitavo andar do prédio.
Ao chegar lá, caminhou até o apartamento número oitocentos e dois e tocou a campainha.
Por cinco minutos, a única coisa que ouviu foram os latidos raivosos de um cachorro. Coçou a cabeça, consultou o relógio e, irritado, apertou novamente o botão da campainha. Novamente ninguém apareceu. Somente os latidos do cachorro foram ouvidos, agora ainda mais estridentes e irritantes.
- Será que não tem ninguém em casa? – perguntou o policial que lhe acompanhava.
- Impossível. Antes de nós subirmos, perguntei ao porteiro e ele me garantiu que ele estava aqui.
- Então deve tá se escondendo... - retrucou o policial.
Não respondeu.
Limitou-se a consultar o relógio e a tocar a campainha pela terceira vez.
- Meu Deus, que cachorro irritante! – reclamou o policial.
Dessa vez, porém, finalmente ouviram-se passos do lado de dentro do apartamento.
- Cala a boca, mel! – gritou alguém do lado de dentro do apartamento, que aparentemente brigava com o cachorro.
Os passos chegaram até a porta. Curiosos, escutaram um barulho na fechadura. Lentamente, a porta foi parcialmente aberta, revelando um par de olhos curiosos por entre a fresta.
- Pois não? - perguntou uma voz feminina.
- Este é o apartamento do Sr. Lucas Alves?
- Sim senhor. Quem gostaria?
- Bom dia! Eu sou oficial de justiça, e trago comigo um Mandado de Penhora assinado pelo juiz da terceira vara cível da comarca de F., que me autoriza a entrar no apartamento, utilizando a força se necessário for, para apreender tantos bens quantos forem necessários para o pagamento do débito contraído pelo proprietário deste apartamento, junto ao banco B..
- Espera só um instantinho – disse a voz feminina, assustada, fechando completamente a porta.
Não transcorreram nem dez segundos em silêncio e gritos foram ouvidos do lado de dentro do apartamento:
- Pai! Pai! Acorda, pai! Tem um homem do lado de fora dizendo que é oficial de justiça!
Os gritos foram diminuindo, o apartamento foi ficando silencioso.
O sobrolho levantado, a testa contraída, Uchoa ficou olhando o teto. Visivelmente irritado, ainda teve que esperar por alguns minutos até que, finalmente, saísse do apartamento um homenzinho miúdo, rosto molhado, cabelos despenteados e cara de quem havia acabado de acordar.
- Bom dia! – disse ele.
- Bom dia. O senhor se chama Lucas Alves? – perguntou Uchoa.
- Sou eu, sim.
Com uma das mãos entregou o mandado ao proprietário.
- Pois bem, como eu disse anteriormente, sou oficial de justiça e possuo aqui comigo uma ordem de penhora em desfavor do senhor. Tenha a bondade de mostrar o apartamento.
Alves, os olhos a saltar-lhe das órbitas, leu rapidamente o mandado; viu seu nome, o nome do banco e o tamanho da dívida, todos em negrito.
Sorrindo azedo, por alguns segundos colocou o seu olhar imóvel nos visitantes não convidados.
- Pois não! Façam o favor de entrar.
Cuidadosamente, os dois adentraram a sala. Uchoa, olhos atentos a todos os objetos da sala, anotava alguma coisa em uma prancheta, que tirou da maleta que trazia consigo.
- O senhor teria a bondade de nos mostrar o apartamento? – perguntou novamente para o proprietário.
- Claro, pois não. Me acompanhem.
Não deu nem dois passos e parou. Desgostoso, olhou para os visitantes e disse:
- Os senhores vão que me desculpar a bagunça, mas é que eu não estava esperando por isso. Não faz nem dois dias que liguei para o banco para renegociar a dívida, eu consegui um emprego esses dias, eu ia pagar. Só precisava de mais tempo...
- Pelo visto eles decidiram não esperar – interrompeu Uchoa, com uma voz entediada, de quem já estava habituado a ouvir essas coisas. – Agora o senhor poderia nos mostrar os cômodos?
- Claro, pois não.
Alves, sorrindo azedo e esfregando as mãos, conduziu os visitantes pelo apartamento. Uchoa pôs os óculos e, com o jeito de um turista-conhecedor que examina coisas notáveis, passou a inspecionar a propriedade. Primeiro foram á cozinha, onde ele viu que os eletrodomésticos, apesar de antigos, estavam em boas condições. Procurou também por alguma prataria, mas não encontrou nada, somente um conjunto de pratos e copos de plástico vagabundo, sem qualquer valor comercial. De lá foram até o quarto da filha. O quarto era bonito, bem pintado, móveis planejados - sinal de que os proprietários já passaram por tempos melhores - mas fora isso, não havia quase nada lá. Somente uma televisão e um som velho. Chegaram até ao quarto do casal. Este, igual aos outros, também não possuía muita coisa de valor. Próximo a cama, em um criado-mudo, havia o retrato de uma mulher. Curioso, o policial que acompanhava Uchoa perguntou ao proprietário:
- É sua mulher?
- É.
- Muito bonita, ela.
- Obrigado. Ela era muito bonita, mesmo. Essa foto ai foi tirado pouco tempo antes dela descobrir que estava doente.
- Doente de quê? – perguntou o policial, cada vez mais curioso e animado.
- Um tipo raro de câncer no intestino. Foram três anos de muita luta e dor. O plano de saúde não quis pagar o tratamento. Disse que era uma doença pré-existente. Tivemos que arcar sozinhos com tratamento. Tratamento caro... Remédio importado... Cada um deles custava pra mais de mil reais a cartela... Por isso tive que pedi um empréstimo no banco... Pouco tempo depois, acabei perdendo meu emprego, faltava demais por causa da doença dela...
- Bando de safados – disse indignado, o policial.
Uchoa, que até então revistava as gavetas em busca de alguma jóia ou objeto de valor, resolveu interromper a conversa:
- Não incomode o homem, jôjô – disse para o policial.
E, virando-se para o proprietário, disse:
- Pronto, podemos ir para o quarto.
Chegaram, então, ao quarto do filho, que se parecia muito com o da irmã. Móveis planejados, bem pintado... Mas quase vazio. Em cima de um móvel, próximo a estante, Uchoa encontrou um vídeo-game de última geração. Ficou feliz. Juntando com ele, talvez conseguisse o valor quem o banco desejava receber. Talvez fosse ganhar aquela gratificação que o banco pagava por fora, toda vez que ele conseguia achar o valor que eles pediam.
Quase sem conseguir esconder a satisfação que sentia, Uchoa começou a mentalmente calcular o valor de todos os objetos encontrados no apartamento. As cadeiras, as mesas e o sofá da sala são de madeira boa, valem muito, só ai deve ter uns quatro mil... Tem também os arranjos, os tapetes, a prataria, os castiçais... Acho que dá uns mil... Na cozinha, juntando tudo, uns dois paus...
O som de alguém chorando baixinho foi ouvido pelo quarto.
...No quarto da menina não tem muita coisa, mas acho que consigo alguma coisa pelos móveis, tudo planejado, trabalhado, madeira boa... mil e quinhentos paus deve valer, fora o som e a televisão... No quarto do pai tem a cama de casal, cama boa, vale muito, os quadros, os porta retrato, os móveis, acho que consigo uns dois paus... Só ai, juntado tudo, eu acho que dá quase os dez contos que eles me pediram, e ainda tem o quarto do menino que...
O que era um choro baixinho logo se transformou num berreiro gigante e fez com que Uchoa se perdesse nas contas. Visivelmente irritado, ele perguntou:
- Vem cá, quem é que tá chorando ai?
- É meu filho.
- Tá chorando por quê? Insistiu Uchoa.
- Por causa do vídeo-game.
- Que é que tem ele?
- Depois que a mãe dele morreu, ele ficou muito triste. Por isso, eu e minha filha nos juntamos e compramos esse vídeo-game pra ele de presente de aniversário. Ele ficou super feliz, foi a melhor coisa que aconteceu a ele nos últimos três anos. Ainda nem términos de pagá-lo...
Os soluços foram aumentando, o choro ia longe.
- Esses meninos são tudo doido por esse bixo. Lá em casa, o meu também é doido por um bixo desses – disse Uchoa, subitamente lembrando-se do seu filho. – O chororô é tanto, que eu prometi até dar um desses de aniversário pra ele.
Uchoa ficou calado, pensativo. Coitado do menino, já sofreu tanto na vida, bem que ele podia fingir que não viu o vídeo-game. Por outro lado, porém, ele tinha que consegui arrecadar pelo menos dez mil, se não era adeus comissão do banco. Dinheiro bom, tinha precisão dele. Lembrou-se, ainda, do filho e da promessa que havia feito a ele. Mentalmente, calculou novamente quanto já havia de ter arrecado com os objetos. Com sorte, devia ter conseguido um pouco mais de dez mil. Mas ele não tinha certeza, calculou tudo de cabeça, alguns objetos estavam antigos, podia dar menos no leilão. O vídeo-game era a garantia que ao menos nos dez mil ele chegava. O que devia fazer então? Uchoa ficou frio... Cruel instante! Por que foi inventar de ser justamente oficial de justiça? Por que não estudou o suficiente pra ser juiz? Uma hora dessas, ia tá no gabinete, sem fazer nada...
Uma nuvem negra passou-lhe pelos olhos.
Sim, bem que ele podia fingir que não o vídeo-game do menino, mas isso poderia significar a perca da comissão que ele tanto esperava e contava.
O choro do menino ecoando pela sala.
Olhou para o pai e pro policial. Os dois lhe olhando. Olhares fixos, apreensivos, de quem estar á espera de um veredito.
O choro do menino ecoando pelos seus ouvidos.
Lembrou-se do filho. O aniversário dele tava chegando, já era no próximo mês. O bixim ia ficar tão feliz se recebesse o vídeo-game de presente. A mulher iria parar de atanazar a mente. Ademais, ele prometeu, e promessa é promessa. Ficou decidido. Com uma das mãos pegou a caneta e anotou na prancheta: vídeo-game.
Depois, virou-se para o pai e disse:
- Às três horas o caminhão vem buscar os produtos.
Com uma das mãos fez um gesto chamando o policial e os dois foram caminhando até a saída. No caminho, em um dos quartos, encontraram o menino aos berros deitado no colo da irmã.
- Chora não, maninho, chora não! A gente compra outro desses pra você – repetia ela a toda hora, enquanto acariciava os cabelos do irmão.