O Gorila
01
Eu tinha dezessete anos. Uma idade perdida e soberba. Era capaz de esporrar até três vezes mantendo uma ereção petrificada e ininterrupta. Não conseguia me ligar em nada que prestasse e, pra piorar, eu era um adolescente sem grana.
Depois de ter passado a infância entre campinhos de várzea e empinando papagaios, fui ser "boy" de banco com quatorze anos. Com meus parcos estudos não consegui manter o emprego e aos dezessete sentia pela primeira vez o gosto acre do desemprego. Não que eu gostasse tanto assim do banco, meu negócio era música e literatura. O problema é que, desempregado e sem estudos, logo ganhei da minha mãe a alcunha de vagabundo. Só porque eu ficava o dia inteiro no banheiro surrando um violão ou na biblioteca pública entre velhos e empoeirados livros.
Para escapar dos elogios da mamãe tratei de ficar mais tempo na biblioteca. Fingia que estudava de manhã, almoçava e caía fora.
Todas as tardes eu andava entre aquelas prateleiras a esmo; era meu refúgio. Pegava um livro qualquer, abria no meio e começava a ler ali mesmo. No início não havia nenhum critério para a escolha, era uma relação física com os livros. Aos poucos me familiarizei com aquele cheiro de mofo do papel, aquelas páginas amareladas pelo tempo; senis. Eu gostava do aspecto degenerativo deles. Combinavam com minha baixa auto-estima.
Com o tempo fui variando meus métodos de escolha. Um livro me levava a outro através de referências dos autores. Enquanto lia "O Encontro Marcado" do Fernando Sabino, anotava autores citados no livro como: Knut Hansun, Dostoievski, Proust, Cervantes; entre outros.
Rapidamente memorizei aquelas prateleiras e suas seções. Mesmo assim ainda mantinha o hábito de escolher um livro aleatoriamente de vez em quando; critério pouco seletivo, porém fértil em boas surpresas.
Sempre saía da biblioteca com dois livros e terminava as tardes num banco qualquer da praça da liberdade. Sentia-me um D'artagnan, onde Porthus, Athos e Aramis, eram Mauro, Eduardo e Hugo. Eu puxava angústia sozinho.
02
Quando Renata apareceu eu estava numa fase erótica-pervertida-amoral, instruído por Oscar Wilde, Henry Miller e Charles Bukowski. Porém, minha vida sexual, na prática, se resumia nos calos da mão direita, várias tentativas com domésticas e namoros fugazes. O aproveitamento final era decepcionante: só havia concluído o coito com apenas duas delas - e uma de cada vez.
Mas Renata era uma mulher acima de tudo isso; era uma MULHER com todas as letras maiúsculas, itálicas, reticuladas e em negrito. Definitivamente eu não estava acostumado com aquilo.
Naquela primeira quarta-feira que nos encontramos, nossa comunicação se deu apenas por olhares. Normalmente sou discreto, mas eu estava hipnotizado e meus olhos a procuravam sem nenhum cuidado em me expor. Sua primeira reação foi de desdém; posteriormente pareceu achar graça em ser paquerada por um adolescente.
Eu não estava nem aí; apenas delirava com toda aquela elegância desfilando sobre saltos sacrificantes e metida num vestido azul que terminava pouco abaixo dos joelhos .
Ficou nisso e ela foi embora sem levar nenhum livro.
03
Talvez por eu achar que não mais a veria, procurei tirá-la da memória. Entretanto, exatamente uma semana depois, praticamente no mesmo horário, lá estava ela; dessa vez de vestido vermelho. Andava entre as prateleiras a procura de algum livro. Não titubeei e com uma coragem que me era desconhecida, parti em sua direção.
- Posso te ajudar? - Ela se assustou um pouco.
- Você trabalha aqui?
- Não, mas conheço bem a biblioteca. Estamos no corredor dos escritores americanos. Procura algum em especial?
- Pois é, uma amiga que me indicou um livro de uma tal de Henry Miller.
- Bem, vejamos - falei me abaixando numa prateleira e retirando um grosso volume.
- Deve ser esse aqui, Sexus.
- Como sabe que era esse o livro?
- Intuição literária.
- Sei - falou sorrindo.
Entusiasmei-me:
- Pela indicação da sua amiga você deve estar precisando rever seus conceitos em relação a sexo.
- Quê que isso garoto, você não sabe nada sobre minha vida. Que presunção é essa?
- Me desculpe, realmente falei demais. Acho que sua beleza desconcertou meu raciocínio; me desculpe.
Dessa vez ela perdeu aquele semblante de desdém e ficou sem ação. Eu não estava ligando, havia sido sincero. Não parava de admirar o seu rosto; ainda mais forte visto de perto. Olhos grandes, bochechas rosadas e sadias, lábios grossos e queixo saliente. Nem todos a achariam bonita. Para mim era linda como um animal selvagem criado em jaula de ouro.
Pegou o livro, me agradeceu, virou as costas e se encaminhou para a saída do corredor. Por esmola me deixou duas visões maravilhosas: o movimento dos quadris - um convite - e os cabelos longos, castanhos e perfeitamente anelados numa dança instigante. Eu estava agradecido.
04
Foi uma semana mais difícil que a anterior. A certeza de que ela teria que voltar para devolver o livro não me permitia o luxo de pensar que não mais a veria. Poderia pedir a qualquer pessoa para devolvê-lo. Porém essa opção não me servia de consolo. Desta vez eu tinha certeza de que a veria novamente. Maldita ansiedade.
Quase não almocei naquela quarta-feira. Engoli qualquer coisa muito rápido e corri pra biblioteca. Esforço inútil, ela não apareceu. Só me restou odiá-la.
Levou todo meu sossego vespertino. Não conseguia mais ler; andava entre as prateleiras de olhar atento a procurá-la. Tornou-se impossível sentar calmamente num banco da praça e me concentrar na leitura. Adeus D'artagnan. Abria o livro e as letras simplesmente não entravam na minha cabeça - no sale. Era como se eu estivesse diante de ideogramas japoneses. Minha mente estava totalmente ocupada por ela. Eu estava impotente e escravizado.
A comida perdeu todo o paladar, a cerveja trazia mais amargura que o habitual e os efeitos da maconha tornaram-se tão vazios quanto sua própria fumaça. O sentimento predominante era de raiva por ter sido tão suscetível a essa mulher que eu nem conseguia mais fixar a imagem do seu rosto na memória. Ô órgão besta é o coração.
Minha última esperança era no décimo quinto dia; quando vencia o prazo para a devolução do livro. Cheguei cedo, passei pelas mesmas agonias e nada, não apareceu. Alguns funcionários da biblioteca já me olhavam com estranheza. Enfim desisti.
Eram dezessete e trinta quando saí de lá e fui dar uma volta na praça pra me acalmar. Desfilei entre aqueles enormes coqueiros; desolado. Estava tão vazio quanto pastel de queijo de butiquim.
Escolhi um banco e me sentei. Estava absorto contemplando meu tênis sujo quando comecei a ouvir aquelas insistentes buzinadas. Era um sedan prata, último modelo, carro bacana. Minha precoce miopia retardou o reconhecimento. Mas era ela sim. MEU DEUS! E estava me chamando com os dedos. Cheguei rapidamente, baixou o vidro do carro.
- Oi.
- Oi. Achei que você não viria mais. Só tem até hoje para devolver o livro sem pagar multa - como se ela estivesse preocupada com multa.
- É, eu sei.
- Leu ele todo?
- Sim.
- Gostou?
- Muito - não conseguiu esconder uma certa malícia.
Surgiu um hiato de silêncio.
- Você devolve pra mim?
- Claro, mas preciso da sua carteirinha pra carimbarem.
- Está dentro do livro.
- Ah! Sim, claro.... espere aí que eu volto já - falei pegando o livro de suas mãos e me encaminhando para a biblioteca.
Quando a funcionária me devolveu a carteira, li no cabeçalho: Renata Fonseca Bittencourt. Não espiei o resto das informações.
Eu estava surpreso com a naturalidade da nossa conversa. Voltei rápido e lhe entreguei a carteira.
- Obrigada.
- Não por isso.
Fez-se novamente aquele hiato. Eu tinha tanto pra dizer, mas não saía nada. Ela parecia estar na mesma situação.
- Quer uma carona? - falou repentinamente.
- Como? - demorei a entender, ou acreditar.
- Uma carona. Pra onde você está indo?
- Sei lá, quer dizer, pra qualquer lugar.
- Então entra logo, não posso ficar aqui parada a tarde toda.
Aí a ficha caiu. Entrei.
05
Fiquei observando aquele monte de botões no painel do carro. Pra que serviriam? Era um modelo novo, moderno, nunca havia entrado num daqueles.
Ela dirigia silenciosamente. Notei seu vestido preto. Naquela posição os joelhos apareciam; olhei discretamente. Ela percebeu.
Quando parou num sinal vermelho, colocou a marcha no neutro, puxou o freio de mão e retirou do porta-luvas um maço de Carlton e um isqueiro prata. Antes de conseguir sacar o cigarro do maço o semáforo ficou verde. Ela deixou tudo sobre o vestido, destravou o freio de mão, pôs a primeira e seguiu.
Conduzi lentamente minha mão em direção ao seu ventre, peguei o isqueiro e o maço de Carlton. Ela teve um rápido frêmito nos quadris e seu olhar passou vigiando meus movimentos. Chupei a fumaça e me certifiquei se tinha acendido. Inverti o cigarro entre meu polegar e o indicador, dando uma meia volta e colocando o filtro entre seus lábios. Ela sorveu o fumo, relaxou um pouco. Olhou-me.
- Você não é muito novo pra fumar?
- Não fumo e nem sou tão novo assim.
- Qual a sua idade?
- Dezenove - menti.
- Parece menos.
- É essa minha cara de menino. Vou ficar assim pra sempre - tipo Dorian Gray.
- Dorian o que?
- É uma personagem do Oscar Wilde que não envelhece. Você ainda vai acabar lendo.
- É tipo o outro?
- Mais ou menos.
- São livros perigosos.
06
Logo percebi que o nosso destino era o beagá shopping. Entramos num restaurante que eu conhecia só de nome. Estava vazio e fomos nos sentar no fundo do grande salão.
- Não tenho grana pra freqüentar esse tipo de lugar - falei um pouco constrangido.
- Você é meu convidado.
Suas palavras me acalmaram e me preocuparam simultaneamente. Havia um tom de posse nelas.
Logo veio o garçom. Deu boa tarde e me entregou o cardápio. Olhei atentamente.
- Vou querer um chope. E você?
- Uma Smirnoff por favor – falou se dirigindo ao garçom.
Ele anotou os pedidos e se afastou.
Renata buscou na bolsa o maço de Carlton e o isqueiro. Parecia nervosa. Pôs o cigarro na boca. Peguei o isqueiro prata e lhe estendi a chama. Ela deu uma longa baforada contemplando o teto de gesso rebaixado do restaurante. Relaxou.
- Você deve estar pensando coisas ruins de mim - falou sem me olhar.
- Tipo o que?
- Sei lá, que eu fico trazendo garotos aqui.
- Não estou pensando nada e não sou nenhum garoto.
- Você pode não acreditar, mas nunca fiz isso.
- Acredito.
Fomos interrompidos pela chegada do garçom com as bebidas. Serviu e se retirou.
Tomei um generoso gole - minha garganta estava seca. Ela tomou quase metade da vodka de uma só vez.
- Eu não sei nem o seu nome.
- Alex.
- Alex é apelido.
- No meu caso não. Alex Xavier, curto e grosso.
- Bonito nome. Combina com você.
- Isso é um elogio?
Ficou embaraçada. Deixou o cigarro sobre o cinzeiro e esfregou as mãos. Foi a primeira vez que notei a aliança. Evidentemente uma mulher daquelas não poderia ser solteira. Aquilo estava sendo difícil pra ela. Procurei retomar a conversa.
- Renata também é um nome muito bonito.
- Não me lembro de ter dito meu nome.
- Não disse. Olhei na carteira da biblioteca.
07
Com o tempo e com as bebidas o constrangimento foi desaparecendo. Já estávamos rindo descontraidamente.
Fui ao banheiro. Enquanto mijava percebi que precisava agir rápido. Uma mulher casada não poderia se demorar muito.
Quando voltei, arredei minha cadeira que estava em frente para o seu lado. Ela acompanhou com os olhos - ficou séria. Matou o resto da vodka e apagou o cigarro no cinzeiro. Peguei sua mão e a envolvi entre as minhas, acariciando-a. Não me olhava - parecia querer resistir. Mas não poderia. Afaguei seus cabelos e segurei sua nuca, Ela se virou. Havia lágrimas e havia permissão.
Foi um beijo sofrido, amargo e profundo. Depois enxuguei suas lágrimas. Seu rosto estava muito vermelho e soluçava um pouco.
- Você não pode beber mais; se ainda quiser dirigir.
Ela sorriu.
- Você dirigi?
- Não.
Pagou e fomos embora. Pedi pra ficar na praça mesmo. Queria andar até o centro. Andar me ajuda a pensar. Desci do carro e trocamos apenas olhares. Não havia necessidade de palavras. Eu sabia que ela iria voltar no dia seguinte.
Andei pela cidade, fui até a zona, conversei com algumas putas. Mas não trepei. Só queria estar com outras mulheres. Depois fui para um bar. Tinha grana pra duas cervejas além da passagem de ônibus. Tomei as duas, peguei o ônibus e cheguei tarde em casa. Todos dormindo; assim que eu gostava.
08
Nem cheguei a entrar na biblioteca. Fiquei perambulando pela praça. Antes das duas da tarde avistei o sedan; já fui entrando. Ela me recebeu com um sorriso. Usava o vestido azul. Meia hora depois estávamos no mesmo restaurante. Trocamos poucas palavras e muitos beijos. Só parávamos quando o garçom chegava pra renovar as bebidas. O tesão era enorme e começamos a nos bolinar. Teve seu primeiro orgasmo comigo ali mesmo - na ponta dos meus dedos.
Acendeu um cigarro e ficou pensando fumaça.
- Isto é uma loucura.
- Por isso que é bom.
- É perigoso.
- Isso também ajuda.
- Não brinque com essas coisas.
- É a pura verdade.
- Ah! Como tentei evitar, mas não consegui.
- Eu sei, tem coisas que estão acima de nossas forças.
Nos abraçamos como dois cúmplices de um crime. Voltamos à carga. Beijos e bolinações. Daí ela parou de repente.
- Não podemos ficar fazendo isso aqui. O garçom já reparou.
- Ele não tá nem aí.
- Mas é perigoso, pode entrar alguém conhecido.
- Acho difícil a essa hora da tarde. Agora, é claro que seria melhor se estivéssemos totalmente a sós.
- A Débora - falou baixando o tom de voz – aquela que me recomendou o livro, me contou umas histórias de algumas amigas dela que se encontram com o amante aqui no shopping e vão para um motel de táxi.
Eu sabia como funcionava esse esquema. As mulheres chegam de carro no shopping, recebem o cartão de estacionamento que registra o horário de entrada, encontram com o amante, pegam um táxi e vão para um dos motéis que ficam a cinco minutos do shopping. Depois da diversão retornam, também de táxi, pegam o carro e registram o horário de saída. Quando chegam em casa deixam o cartão de estacionamento displicentemente a vista do marido; que sempre olha enquanto ela se penteia no banheiro. Para arrematar ela ainda faz um comentário entre bocejos: "Passei uma tarde super cansativa no shopping, encontrei uma colega da faculdade que não largou do meu pé. Contou toda sua vida. Fui ao cabeleireiro só pra me livrar dela". E o marido se sente livre dos chifres.
- Sei como funciona, o cartão de estacionamento né?
- Como assim você sabe?
- É que eu tenho uma amiga que trabalhou numa loja de sapatos daqui e várias de suas clientes lhe contavam esses casos. A idéia é boa, podemos experimentar.
- É muito perigoso.
- Nascer é perigoso, vamos lá, se não for hoje será qualquer outro dia. Você sabe disso.
Ela ficou pensativa por um tempo. Depois sorriu. Chamou o garçom, mandou fechar, pagou e me puxou pela mão.
- Vamos!
09
Tinha medo de que me pedissem a carteira de identidade. Com minha barba de pêlo de rato eu entrava na zona e nos cines pornôs da cidade sem problemas. Até mesmo num dos pulgueiros da avenida Santos Dummont eu consegui entrar uma vez. Mas em motel de luxo eu não sabia se iria funcionar. Contar a verdade pra Renata estava fora de cogitação - perderia o peixe. Só me restava arriscar e preparar uma desculpa.
A recepcionista do motel me fitou no banco de trás do táxi. Parecia saber que eu era menor de idade. Mas deixou passar. Que alívio. Depois é que raciocinei que eu não devia ser o único amante verde trazido por uma madame naquele motel. Renata não notou minha aflição – devia estar concentrada nas suas.
Transamos até a exaustão. Relaxamos na hidromassagem e voltamos à carga. Foram mais de quatro horas quase sem pausa. Era toda aquela energia acumulada servindo pra alguma coisa. Depois de descansarmos um pouco, Renata percebeu o horário e nos apressamos. Ainda faríamos toda aquela baldeação no Shopping.
Fiquei na praça.
10
Essa passou a ser nossa rotina nos dias de semana. Jamais nos encontrávamos aos sábados e domingos; nem nos feriados. Mas durante a semana, raramente falhava. Quando acontecia eu queria morrer. Estávamos insanamente apaixonados.
Aproveitando um dos raros momentos de lucidez, colocamos algumas regras. Sem promessas, não falaríamos do seu casamento e ela não perguntaria nada da minha vida. O combustível deveria ser só sexo. Pura pretensão.
Ela insistia em me dar presentes, principalmente roupas. Ficou cansada do meu jeans surrado, tênis sujo e camiseta branca. Um kit quase infalível. No início eu não queria aceitar de jeito nenhum. Mas depois fui cedendo. Passei a usar mocassins. Negociei as calças de tergal por jeans da Vide Bula e camisas sociais por pólos com jacarezinho. Fiquei até bem. Dinheiro eu não queria aceitar. Porém ela me convenceu que aquelas roupas não combinavam com uma carteira vazia - vazia e novinha em folha.
Continuava me deixando na praça. Eu chegava em casa e tinha que ficar dando explicações sobre aquelas roupas. Tava enchendo o saco. Foi aí que comecei a chegar cada vez mais tarde. Da praça eu descia pro centro e ficava tomando cerveja. Depois, se me restasse animação, ainda passava na zona. Comecei a gastar a grana da Renata.
11
Nunca repetia uma puta. Regra que só quebrei com a chegada de Soninha. Uma morena carioca mingnon de corpo perfeitinho - e uma bundinha fantástica. Parecia mais nova que eu. Era o contraponto da Renata: rude, desbocada e incapaz de um gesto de delicadeza. Eu a comia com raiva (sempre pensando na Renata); escalando todos os palavrões possíveis. Não dei a mínima quando, de quatro, ela falou que nunca tinha dado o cuzinho porque tinha medo que doesse. Enfiei tudo - o que não é pouco. Urrou, foi invadida e acabou se apaixonando.
Ela morava num dos pulgueiros do centro - um hotel na rua Curitiba. Coladinho na rodoviária; o Concord. Eu dormia lá às vezes com ela. Quando estava bêbado demais pra ir pra casa.
Foi nessa época que comecei a pirar. Queria a Renata por inteiro, alma e corpo. Era um assunto proibido entre nós. Eu remoía sozinho, bebendo cada vez mais. Terminei muitas noites vomitando no quarto do Concord - deixando a Soninha na mão.
12
Foi no buteco onde eu batia ponto diariamente que encontrei um amigo de infância: o Rômulo.
- E aí cara, quanto tempo hein? - nos abraçamos.
- Muito tempo mesmo né?
- Quê que se anda fazendo?
- Tô trabalhando numa agência de turismo aqui perto, e você Alex?
- Saí do banco. Já tem uns oito meses. Tô aí vadiando.
Colocamos o papo em dia. O Rômulo era um cara que sempre andava com uma "erva"; me ofereceu. Fazia muito tempo que eu não fumava. Não é minha praia. Pensei: "ah! que merda, tô precisando mesmo sair um pouco do ar".
Fomos pro parque municipal acender o toco.
Soltei a língua e contei tudo pra ele. Renata, Soninha, zona, amor - aquela merda toda. Ele se preocupou.
- É cara, esse tipo de negócio não costuma acabar bem não.
- E você acha que eu não sei. Não consigo é parar. Tô ligado demais na Renata. Esse negócio tá me deixando pirado.
- Você tem que dar um jeito de sair disso cara. Imagina se marido dela sacar.
- Pois é. Mas eu tô é cada vez mais atolado. Olha só essas roupas que ela me deu - mostrei uma sacola cheia. - Fora a grana - abri a carteira. - Ela quer me pagar até tratamento dentário. Pode? - como é que para?
Bebemos no segundo andar do restaurante Rococó - que fica na avenida Afonso Pena - em frente ao parque.
As quatro da madrugada estávamos no ponto do ônibus - por coincidência era o mesmo. O dele chegou primeiro.
- Tiau cara!
- Tiau! - respondi ficando sozinho.
Apaguei.
Acordei na Manhã seguinte no banco do ponto de ônibus. Bati a mão no bolso - estava sem a carteira e sem a sacola com as roupas. Balão apagado - não foi a primeira vez E nem seria a última.
13
Era uma quinta feira. Passei a manhã vomitando pelo centro.
Duas da tarde eu estava na praça da liberdade. Ela não demorou. Assustou-se quando me viu.
- Quê que aconteceu com você?
- Uns putos bateram minha carteira.
Entrei no carro. Tentei beijá-la. Esquivou-se.
- Você está fedendo a bebida.
- Encontrei um velho amigo.
- Você é muito novo pra ter velhos amigos - e também pra beber desse jeito.
Eu ainda estava um pouco bêbado. Fiquei fulo da vida. Odiava quando ela insinuava minha pouca idade. Pensei: "é por isso que não posso te ter né? Sou novo e não tenho a grana que esse filho da puta desse seu marido tem pra te encher de luxos". Só pensei. Falei outra coisa:
- Que porra é essa, tá pensando que é minha mãe.
Ficou ofendida e calou-se. Assunto encerrado.
Virou a chave e seguiu. Provavelmente queria me expulsar do carro. Mas não o fez. Com certeza sentia-se culpada. Foi para o estacionamento do Shopping como um boi vai pro matadouro. Mandou que eu ficasse no carro. Meia hora depois voltou com roupas, sapatos e uma carteira de couro.
Abri a carteira só pra conferir. Claro que tinha recheio.
- É quanto estou valendo hoje?
O tapa não doeu muito. Não consegui demonstrar nem surpresa. Ela baixou a cabeça, parecia chorar.
- Ei, ei, me desculpe. É que não tá sendo fácil pra mim sabe... eu te amo.
- Combinamos não tocar nesse assunto - falou entre lágrimas.
- É verdade, eu sei, vou procurar me controlar.
Fomos pro motel e fizemos tudo como sempre. Só que desta vez tinha gosto de despedida. Sabíamos que era a última vez.
Fiquei na praça. Não trocamos palavra. Ela ainda tinha lágrimas nos olhos, desci. Arrancou o carro, contornou o palácio e sumiu na avenida Cristóvão Colombo. Para sempre.
Fiquei andando pela praça pensando nuvens.
14
Custei a notar aquele carro preto. Na verdade já o tinha visto em outras ocasiões - um Ômega com todos os vidros escuros - carro sinistro. Curiosamente estava estacionado no mesmo lugar que Renata sempre me encontrava. Emocionalmente abalado, demorei a unir os pingos aos is. Quando percebi já era tarde. Dois homens vestidos rigorosamente iguais - terno preto, camisa branca e gravata vermelha - saíram simultaneamente do carro e vieram ao meu encontro. Nem me mexi. Um deles: muito alto, forte, branquelo, sem nenhum traço de humanidade no rosto. O outro: mais baixo, moreno, uma montanha de músculos. Imaginei que suas roupas deviam ser feitas sob medida, ou compradas em lojas do tipo: "O Gordo Elegante". Mas o volume era no tórax e não na barriga. Gostei dele. Apesar daquela cara sem expressão, não havia sinais de crueldade.
Chegaram. O branquelo me segurou pelo braço.
- Tem uma pessoa ali que precisa falar contigo - disse sem esconder nenhum dente.
Me empurraram pra dentro do Ômega sinistro.
Eu sabia o que estava acontecendo. Aquele carro cruzou meu caminho várias vezes. Se eu tivesse escutado o Rômulo. Mas o amor é mesmo cego. Aliás: cego, surdo, mudo, burro e provavelmente morto.
15
Dentro do carro ficou assim: na frente o motorista e o branquelo. Atrás o gorila, eu no meio e ele - o marido. Os dois leões-de-chácara exibiam cada um a sua 45 preta com silencioso - coisa fina. Entendi o recado. Ao sinal do patrão o motorista seguiu.
Sentia o frescor do ar condicionado. Era bem mais potente que o do carro da Renata. Fiquei espiando os botões do painel. Havia mais botões que no carro dela também. Sem falar nos bancos de couro - uma beleza. Noutras circunstâncias eu teria adorado aquele passeio.
- Qual seu nome moleque? - Veio dele a pergunta.
- O doutor deve saber - respondi com naturalidade.
O branquelo deve ter interpretado minha resposta como algum tipo de atrevimento, pois me acertou uma coronhada; abrindo o supercilio esquerdo. Já deve ter sido corneado também. O sangue escorreu manchando minha camisa novinha. Presente da Renata.
Ficaram todos me olhando pra ver se eu ia morrer. Não morri. O patrão fez um sinal pro branquelo pedindo calma. Certamente ele pretendia saborear mais aquele momento. Não queria uma ejaculação precoce. Até recebi um lenço. Claro que a preocupação era com os bancos de couro. Muito justo.
- Você deve saber quem sou eu e porque está aqui - tentou mais uma vez.
- Faço uma idéia.
Percebi que o branquelo se ouriçou - queria me acertar novamente. Mas acho que pensou no emprego.
- Há quanto tempo vocês estavam se encontrando? - perguntou.
- Três pra quatro meses.
Suspirou e olhou pela janela. Eu tentava imaginar o que ele estava pensando. Cheguei a sentir pena. Olhou-me pela primeira vez nos olhos - com muito ódio - e falou quase soluçando.
- Você não passa de um pirralho. Não consigo entender porque uma mulher como a Renata, mãe de dois filhos, que tem tudo o que quer, se arrisca por um merdinha como você.
Nem me ofendi. Fiquei pensando naquela revelação.
- O doutor pode não acreditar, mas eu não sabia nada sobre filhos.
Olhou em minha direção incrédulo. O branquelo estava louco pra entrar em ação - ele realmente sentia prazer naquilo. O gorila permanecia impassível com sua parede de músculos e a 45 reluzente.
Pensei em Renata e no que eu poderia fazer por ela, já que me sentia bem morto. Decidi tentar amenizar sua barra.
- Sabe doutor, por mais estranho que pareça, posso lhe garantir que a Renata é uma mulher íntegra. Isso tudo só aconteceu porque estava acima da nossa vontade. Não conseguimos controlar.
- É impressão minha ou você tá querendo protegê-la. Quer me convencer que tinha amor nisso? - você não passa de um gigolozinho de merda.
Desviou o olhar pra janela. Estava muito nervoso.
16
Finalmente o Ômega sinistro parou. O gorila me tirou do carro com uma violência artificial. Não era da sua natureza.
Olhei em volta. Conhecia aquele lugar; estrada velha de Nova Lima. Boa escolha - um ótimo deposito de corpos.
A primeira pancada veio do pé direito do branquelo - direto no saco - com certeza ele já tinha sido corneado. Fiquei de joelhos, todo contorcido e gemendo feito filhote de gato. Continuou batendo - muitos socos e pontapés. Mas de nada adiantava. O imbecil não soube guardar o melhor pro final. Depois daquele primeiro chute não havia como eu sentir outras dores.
Finalmente se cansou e deu lugar pro gorila. Porém ao invés de me espancar, ele tirou a 45 do coldre. Eu sabia que ele não era um cara ruim - queria acabar rápido com meu sofrimento.
Apontou a arma pra minha cabeça. Eu estava no chão, quase desacordado. Nossos olhos se cruzaram. Ele percebeu que eu estava lhe agradecendo. Puxou a trava de segurança e ajeitou o dedo no gatilho. Impossível errar.
Fechei os olhos.
17
Eu estava delirando quando ouvi a porta do carro se abrindo e o chefe gritando: "pára! Pára! Já chega!". Por um momento cheguei a pensar que era São Pedro me barrando na portaria do céu.
Era visível a decepção do branquelo. Se conseguisse mexer minha mandíbula, eu teria rido. O gorila mantinha-se inexpressivo. Mas eu sabia do alívio que ele estava sentindo. O patrão se abaixou.
- Qual a sua idade?
- Dezessete - respondi com dificuldade. Dessa vez sem mentir.
Ele olhou pra cima falando: "QUE LOUCURA É ESSA MEU DEUS! QUE LOUCURA É ESSA!"
Juntei o resto das minhas forças e falei pausadamente.
- Doutor, acabou doutor, acabou tudo hoje. Nunca mais iríamos nos ver. Não é mentira. O senhor viu que não pedi pela minha vida nenhuma vez. Falo porque parece que o doutor desistiu de me matar. Acabou mesmo. Tente entendê-la, não foi culpa dela.
Ele continuava ali agachado e olhando pra cima. De repente se virou pra mim.
- Olha seu moleque filho da puta, nunca mais atravesse o caminho da minha mulher. Ela será vigiada. Se for cruzar com ela mude de direção. Do contrário você não terá uma segunda chance.
Fiz um gesto concordando. Sem dúvida era um bom negócio.
Enquanto entravam no carro, ainda pude olhar os leões-de-chácara. O branquelo parecia uma locomotiva de raiva. Já o gorila quase sorriu pra mim. Eu sabia que ele tinha ido com a minha cara.
Desmaiei.