O Último Beijo.
O Ùltimo Beijo.
Gama Gantois.
Ao sentir que a morte se aproximava, Vitória externou aquele que poderia ser seu último desejo. Queria ter um encontro a sós com o primo Rodolfo. Não era segredo para ninguém que no passado Vitória e Rodolfo mantiveram um romance ardente e apaixonado. O namoro entre os primos sofreu forte oposição da família.
- Primos-irmãos não podem casar. É contra a lei de Deus, além do mais, os filhos dessa união incestuosa nascerão com deformações genéticas horríveis, diziam seus familiares. Pressionados dessa forma pela família, Vitória acabou cedendo, rompendo a relação com Rodolfo. Este jamais aceitou o fato consumado e jurou que um dia, ainda, iria realizar o seu sonho de amor. No fundo do seu coração alimentava a esperança de reconquistar o grande amor da sua vida, a prima Vitória.
Do outro lado da linha, a recíproca era verdadeira. Vitória amava com toda a sua alma aquele homem. Acalentava no fundo do seu coração o sonho de constituir uma família ao lado do grande amor da sua vida, o primo Rodolfo.
Aquele amor estava cristalizado na sua essência, escrito no grande livro do destino, mas, não conseguiu resistir às pressões dos parentes. Enfraquecida e sem forças para enfrentar a hostilidade da família, acabou cedendo.
Algum tempo depois, promoveram o casamento de Vitória com Otávio, médico de renome e um homem de caráter, sem dúvida alguma, membro de uma família tradicionalíssima da sociedade carioca, mas, fracassou na tentativa de fazer a sua esposa esquecer o amor do passado.
O casamento de Vitória foi um duro golpe para Rodolfo. Dessa união, nasceu uma bela menina, batizada com o nome de Antonia, tendo por padrinho, o nosso personagem Rodolfo. Este passou a se dedicar de corpo e alma à filhada. Era raro o dia em que não ia visitá-la. Antonia era um pedacinho de gente, uma miniatura do inesquecível amor da sua vida: Ambos, Rodolfo e Vitória mantinham uma relação extremamente afetiva. O relacionamento de Antonia era infinitamente melhor com o padrinho do que com o seu pai.
Agora passados 15 anos, estava ali, diante da prima, enferma quase a morte, passando a limpo um pedaço das suas vidas. Olhavam-se nos olhos com a ternura de sempre. Seus corações emocionados batiam fortemente, com nos velhos tempos. Um silêncio imenso, só interrompido pelo arfar das suas respirações, que emoldurava o ambiente. De repente, Vitória falou:
- Meu querido. Sei que o meu fim está próximo. Nesse caso, eu não poderia partir para a eternidade sem antes lhe pedi perdão. Preciso do seu perdão para poder ter paz na minha nova vida.
- Bobagem. Em primeiro lugar, você não vai morrer. Eu não vou deixar. Depois, eu nada tenho a lhe perdoar.
- Claro que tem. Eu fiz coisas horríveis com você. Primeiro sepultei o seu sonho de ser feliz. Depois, matei a sua esperança quando me casei com Otávio.
-Pare de falar bobagens. Você é a mulher mais honrada e mais digna que conheci em toda a minha vida.
- O tempo, as mágoas, as decepções da vida, não lhe transformaram num homem cruel, insensível. Muito pelo contrário, você continua com o mesmo perfil do homem bom, generoso que conheci e eu amei por toda a minha vida. Agora, saiba de uma coisa. Foi exatamente por essa sua beleza interior que eu me apaixonei e jamais deixei essa chama se apagar no meu coração. Eu o amei por toda a minha existência, em silêncio. Cada toque do meu marido, durante as nossas intimidades, eu elevava o meu pensamento para você. Ali, naquele momento não era Otávio meu marido, era você o meu amor definitivo. Eu fechava os olhos e sonhava. Transferia aqueles momentos, para um sonho, para uma quimera de amor. Como desejava que você estivesse ali naquele instante me tocando, me beijando, me amando. Era essa fantasia que me dava forças para suportar a sua ausência. Para suportar tanta paixão reprimida dentro do peito. Amar um amor ausente nos torna mais forte.
Otávio foi um bom companheiro, amigo, carinhoso, mas nunca o amei. O máximo que pude lhe dedicar foi um imenso carinho e uma profunda admiração. Nada mais.
- Vitória. Já que estamos na hora da verdade, abrindo nossos corações, devo lhe confessar uma coisa. Eu também nunca a esqueci e sempre acalentei no fundo da minha alma, a esperança que um dia estaríamos juntos para sempre. Você representa para mim a síntese da vida! O espírito que eleva. A matéria que prende! O sonho que nunca chega. Só você me faz bem. Só você é todo o meu encanto. Só você, eu sei, quando chego, abre a porta sorrindo e chora em silêncio quando vou embora. Sempre pensei em você com muito amor e com uma grande fé em Deus que nossas vidas estariam unidas pelos laços do amor. Oh! Como invejo o seu marido. Daria a minha alma, a minha vida para estar no lugar dele nem que fosse por um breve momento. Passei por essa vida em branco. Não plantei uma árvore, não escrevi um livro e muito menos tive um filho. Quando morrer não terei ninguém para fechar meus olhos, para derramar o seu pranto de saudade, ou mesmo uma simples prece em minha intenção.Quem se lembrará de mim depois que baixar a sepultura? Já Otávio terá Antonia, uma moça belíssima, um doce de mulher dotada de bons sentimentos. Antonia é a Vitória rediviva.
- Predicados herdados do pai.
-. Otávio é um homem digno, generoso, amoroso e muito atencioso.
- Não estou falando do Otávio. Estou falando do pai de Antonia.
- Pois é. Estamos falando do Otávio.
- Não. Estou falando de você, o verdadeiro pai da minha filha, ou melhor, da nossa filha.
- Vitória, não brinque comigo.
- Não estou brincando. Antonia é nossa filha. Fruto do nosso amor, da única vez em que realmente eu fui feliz na minha vida. Guardei esse segredo até hoje, agora não dava para levá-lo para a eternidade. Juro por tudo que é mais sagrado que estou lhe falando a mais pura das verdades. Pegue sob o meu travesseiro a carta onde explico tudo isso que estou lhe revelando. Caberá a você decidir o que fazer. Caberá a você divulgar ou não o meu segredo, ou melhor, o nosso segredo. Mas antes eu preciso do seu perdão. Diga-me, você me perdoa?
Rodolfo respirou fundo, olhou nos olhos aflitos daquela mulher que se despedia da vida e segurando as suas mãos, disse com a voz embargada:
- Nada tenho a lhe perdoar. Lembre-se meu amor, que você foi o espinho cravado na minha alma dorida, mas cultivado sempre com carinho; dor que era doce, dor que era querida! Foi ternura infinda. Dizem que o afeto de um homem será diluído em pérola de pranto, porque o homem que adora, um dia esquece por outro amor o seu maior encanto. Eu digo que não, pois meu amor é maior que a própria vida, passa pela morte e sobrevive na eternidade.
Sei e compreendo seus motivos. Como acredito no peso que você carregou durante toda a vida, guardando esse segredo sozinha sem poder dividi-lo com alguém, sofrendo em silêncio. Não! Não há nada para perdoar. Seu sofrimento ultrapassou em muito o meu.
- Querido amor da minha vida, sempre generoso, meigo, leal. Agora saiba de uma coisa. Meu doce e eterno amor. Se tivesse 10 vidas, por 10 vidas eu o amaria.
- Querida Vitória. Você é que é generosa meiga. Você é uma grande mulher, a minha Vitória. Você foi à única vitória da minha vida. Não a tive a vida toda, mas nos breves momentos em que a tive nos meus braços fui imensamente feliz, disso pode ter certeza. A verdadeira felicidade é breve como uma lágrima.
- Rodolfo! Sinto que a minha vida está chegando ao fim. Minha hora está próxima. Eu não gostaria de atravessar o rio da Morte, sem levar uma lembrança sua, a última lembrança. Quero um beijo de despedida. Um beijo ardente e apaixonado como nos velhos tempos. O nosso último beijo.
Rodolfo inclinou-se beijando o rosto da prima longa e apaixonadamente. Quando terminaram, Vitória sorriu e desabrochou no jardim do Edem. Rodolfo deixou as lágrimas rolarem pelo seu rosto por um longo tempo. Depois de fechar os olhos já sem vida da prima ficou contemplando o corpo inerte da única mulher que amara verdadeiramente. Neste momento lhe veio à mente um pensamento que lhe acompanhou por toda a vida. “Vale de lágrimas e abrolhos, viva eu cem anos, não verei nunca mais olhos tão lindos como aqueles olhos!...
De repente, um imenso vazio tomou conta do seu coração. Sentia-se perdido, sem rumo, sem norte. Um pouco mais calmo, lembrou-se da carta sob o travesseiro. Guardou-a no bolso do paletó e se dirigiu para comunicar aos demais membros da família o passamento da prima Vitória.
Viu o desespero da filha abraçada ao pai. Viu o sofrimento no rosto de Otávio, o choro contido. Então, caminhou lentamente para a porta de saída. Já na rua, resolveu fazer uma caminhada para pensar nos acontecimentos daquele dia. Fora envolvido por um turbilhão de notícias e precisava esclarecer sua cabeça, por em ordem seus pensamentos. Precisava de oxigênio, de ar puro e o ar da noite poderia lhe fazer muito bem.
Só então percebeu vendo a alegria que reinava nos lares cariocas que estava a 15 minutos, do limiar de um novo ano, de um novo século. O século XX. O século das conquistas, das grandes transformações sociais, econômicas e políticas. O século da tecnologia, da esperança, da paz e do amor.
Tomara que esse século traga uma sociedade mais justa, mais fraterna, livre de certos conceitos arcaicos. Que ninguém interfira na vida dos outros. Que o amor seja libertado dos grilhões pré-concebidos. Que o amor triunfe sobre o ódio. Que a solidariedade vença o egoísmo. Que a minha triste história, nunca mais se repita.
A simples lembrança da morte da paixão da sua vida trouxe-lhe de volta toda a amargura, toda a tristeza, toda a dor que uma grande perda é capaz de produzir no ser humano.
Quando finalmente chegou a casa, atirou-se numa poltrona mergulhando profundamente nos seus pensamentos. Nessa prostração ficou por horas seguidas. Súbito resolveu ler a carta reveladora. Lá estava toda a confissão de culpa da prima. Detalhe por detalhe. Ponto por ponto.
Num ato bem pensado, Rodolfo rasgou a carta em mil pedaços. Não satisfeito, queimou os pedaços atirando as cinzas no quintal. Acabara de destruir a única prova, com bastante conteúdo, para denegrir a imagem de uma mulher tida e havida com digna, honrada, virtuosa. Como as pessoas iriam reagir ao saber da verdade? E a cabeça da sua filha?Como ficaria?
Não. Não tinha o direito de destruir, de manchar o bom o juízo que as pessoas faziam daquela mulher. Rodolfo suspirou aliviado e baixando voz pronunciou:
-Vitória, meu amor, seu segredo morrerá comigo. O nosso segredo será só nosso. Nisso ouviu nitidamente uma voz:
-“Meu querido Rodolfo. Sempre generoso, honesto, incapaz de um gesto menos digno. Muito obrigada”.
Rodolfo, incrédulo creditou tal fato ao cansaço.
E você meu caro leitor? Qual seria a sua atitude? Revelaria o segredo dos primos? Sim ou não? A escolha é sua.