COMPADRE
 
Por Suami Paula de Azevedo
 
 
Na realidade éramos confrades, mas nos tratávamos como “compadres”.
Éramos colegas de classe na escola. Lá no tempo do Colegial, o antigo Ensino Médio de então. Havíamos escolhido uma das opções. Afora as profissionalizantes, havia apenas o Curso Clássico, que preparava para o vestibular das áreas de Ciências Humanas, e o Curso Científico, que preparava para as Ciências Exatas ou Biológicas. Escolhemos as Ciências Humanas pois queríamos cursar Filosofia. Exatamente, queríamos ser filósofos. Nem pensávamos em ser professor, nem mesmo de Filosofia.
─ Filósofo!? gritou o pai dele ao ouvir a pretensão. Isso é coisa de mulher, de gente que não quer ou não procura trabalhar, completou seu pai.
Olhamos um para a cara do outro. E o pai continuou:
─ Tem que ser doutor. Ou médico ou engenheiro ou advogado.
Depois conversamos sobre o que ouvimos. Ambos sentimos vontade de rir. Mas não fizemos nem menção disso na hora. Sabíamos do jeito do velho dele. Teria dado um bom tabefe na cabeça dele. E talvez até algo sobrasse para mim.
Aos dezessete anos somos capazes de tudo. Ou melhor, achamos que somos.
Queríamos mudar o mundo. Não só o nosso mundico, mas todo o mundo. Queríamos a revolução, transformar as coisas e as pessoas. Parecia tão realizável...
E décadas depois constatamos que o mundo mudou mesmo, demais. Bem mais do que pretendíamos.
Lembro bem, ele era um amigo, ou mais que isso. Senti muita tristeza com tudo o que aconteceu. Fiz o exame de sangue, mas os nossos sangues não eram compatíveis. A gente se dizia “irmão de sangue”, era como sentíamos na nossa cabeça, mas, na realidade, não éramos. Doei sangue, mas para alguém mais. Transplante? Nem pensar. Não pude ajudá-lo. Sem dúvida, teria doado até mesmo um rim. Mas eu também já não estava tão perfeito assim.
O que sei é que quando ele se foi, perdi algo em mim. E o buraco que me restou foi ocupado pela saudade. Uma saudade besta. Diferente da que senti por meu pai. Diferente daquela por minha mulher. Era como se resultasse de um inchaço, de uma inflamação. Sei lá se era a soma de todas as perdas adquiridas ao longo de tantos anos. A gente já conversava pouco, ou por outra, a gente se falava pouco. Mas era bom ficarmos juntos. Sabíamos que o outro estava ali do lado. Era reconfortante.
De fato, nem ele nem eu nos tornamos filósofos. Fizemos Direito. Advoguei por anos. Ficava lá nos arquivos, onde ninguém do escritório gostava de pesquisar. Não era como hoje, com tudo na Internet. Tínhamos de catar cada caso.
Ele fez concurso para Juiz. Depois de umas tantas tentativas, passou. Mas lá no fundo, sempre soube que ele queria ser mesmo um Escritor. Um Poeta, seria a definição mais precisa. Talvez, se tanto, um Professor de Literatura. Mas partiu, sem isso, uns tantos anos depois de se aposentar da Magistratura.
Tínhamos certeza de que o mundo podia ser plenamente fraterno, em nossa cabeça jovem. Éramos tão garotos. Tão crentes. Tão convictos de nossas ideias. Entendíamos que sem violência as pessoas iriam se aperceber da necessidade de se doarem, de se darem as mãos, de conviverem juntas.
Nem quando um parceiro e, tempos depois, outro, ou melhor, outros, foram mortos, mudamos de posicionamento.
Não nos convencemos jamais que a luta armada seria a solução para alcançarmos um mundo fraterno. Acreditávamos que nossos exemplos de pacifistas convenceriam.
Mas não foi bem assim.
Fui tendo a sensação, desconfortável, de que ele, de algum modo, desistia, aos poucos, de nosso sonhado mundo fraternal, de companheiros. Depois chegou a doença. Até hoje não sei se esse desligamento teve a ver com a descoberta do seu mal. Ou se foram os tempos como Juiz de Vara Criminal. Agora, me parece que ele ia deixando de falar no nosso paraíso tão desejado por nós no mundo, tão além de simplesmente no nosso País.
De todo modo, eu também fui encontrando menos ouvidos receptivos aos meus projetos, que era como definia os meus sonhos.
Não desisti tão fácil. Ajudei a criar clubes de serviço, cooperativas, associações, creches. Ah, foram tantas as ações sociais em que me meti. Em que nos metemos.
Hoje, às vezes, ainda penso que deveria ter lutado mais pela implantação do Dia da Simpatia, em que cada um sorriria ao máximo durante o dia para as demais pessoas por quem passasse.
Vejo as pessoas andarem tão sérias, sisudas. E parecem nem se importarem com isso. Ou melhor, parecem nem ter consciência desse seu estado. Como se essa fosse a única forma de manifestação. E é coisa que começa nas escolas, como se formássemos “cidadãos” em esteiras rolantes de produção em série, padronizadas, estereotipadas. Uma forma de industrialização da formação das pessoas. Todos se comportando iguais, se vestindo iguais, pensando iguais, sentindo iguais. Modeladas.
─ Revolução. Na verdade mudamos o mundo, as coisas, as pessoas. Porém, sem fraternidade.
Seria possível ainda mudar isso?
Pera lá! Pensando bem, o mundo é como o mar, se move em ondas, hora em baixo, hora em cima. Então, um dia pode mesmo mudar essa revolução de agora por um mundo de gente melhor. Não tenho como deixar de achar possível. Precisaríamos nos dar as mãos, pensarmos juntos...
Um sono...
─ Oi, compadre, senta aí. Vamos conversar... Tava pensando aqui naquelas ideias antigas da gente, lembra?...
─ Vô, tá me ouvindo? Não me chama de compadre, não. Então, na verdade, a gente criou o grêmio na escola. Foi igual com o senhor, a diretora também não gostou muito. Mas deixou. Já começamos um trabalho de reciclagem e tá todo mundo apoiando. Vamos partir para a ajuda a colegas que precisam de material e... Vô! Tá me ouvindo?...
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Suami Paula de Azevedo – Poeta, Educador, Palestrante, estudou no Brasil e na França, para onde foi por razões políticas (1971/77). Graduado em Letras (Sorbonne/USP), Pedagogia (FCLRP) e Direito (PUC/UBC), Mestrado e Diploma de Doutorado (DEA) em Linguística (Sorbonne), e outro Mestrado em Semiótica (UBC). Várias publicações, em História Local (Suzano), Educação e Poesia (premiado com o Mapa Cultural/Poesia-1996- SP.
e-mail: suamiazevedo@uol.com.br