O POÇO
Propriedade antiga da família Ramalho, localizada entre os Rios Ipiranga e Tamanduateí, onde sempre se plantou milho e mandioca. E, com o passar do tempo cana de açúcar e café, além do pasto para os bois e para as bestas de carga dos tropeiros que eram visitas constantes nesses locais de pouso.
O casarão imponente, paredes de taipa e coberto com telhas coloniais, daquelas de tamanhos diferentes que não conseguem evitar as muitas goteiras nos dias chuvosos, estava precisando de algumas reformas.
Apenas recuperação das partes danificadas pelo tempo e pelo mal uso, para não alterar a antiga fisionomia, mesmo porque, para evitar a especulação imobiliária, toda a propriedade fora tombada na metade do século passado pelo avô de Silvestre, o nosso amigo herdeiro universal de toda aquela maravilha.
O mato alto dominava a paisagem onde em tempos idos cresciam os plantios, pastavam os animais e havia muito trabalho para escravos e senhores.
O propósito era fazer aquilo tudo dar lucro, sem grandes despesas e sem alterar o desenho da propriedade.
Éramos seis em torno da mesinha do bar e um dos nossos colegas, desse tipo de gente metida à merda, que faz questão de usar a língua inglesa para tudo, sugeriu que fizéssemos um brainstorming a fim de facilitar a escolha e que cada um defendesse a sua ideia.
Mesa de bar tem esse destino de ser nascedouro das grandes ideias, na maioria das vezes desastrosas, como o terceiro reich de Adolf Hitler e o partido dos trabalhadores do Brasil (melhor seria chamar de partido dos parasitas ladrões?).
Enaura, a nossa colega estudante de Turismo, que se gabava de ter “espírito aventureiro” como seu nome sugere, deu a ideia que melhor se encaixava no bolso e nas expectativas de Silvestre: TURISMO RURAL.
Com a voz aflautada, Enaura justificou sua ideia.
1 – O mercado demanda por esse tipo de lazer;
2 – Os clientes não precisarão se deslocar muito para ter acesso ao hotel;
3 – Existe transporte público regular praticamente na porta da propriedade;
4 – O investimento será de baixíssima monta tendo em vista que toda a infraestrutura da fazenda está de pé;
5 – Além do dono que ficará encarregado da recepção e da administração, somente são necessários cinco funcionários (cozinha, copa, arrumação, serviços gerais, cocheira) para se tocar um hotel fazenda.
Era quase madrugada do sábado quando nos despedimos com o compromisso assumido de nos encontrarmos as nove horas da manhã na plataforma da estação Tamanduateí. E, talvez motivados pela aventura, estávamos todos lá, na hora marcada.
Pegamos uma estradinha de barro e em pouco tempo estávamos na porteira da fazenda.
Tudo abandonado.
Sujeira por todo lado.
A cerca quebrada e em muitos pontos inexistente.
Silvestre levou o molho de chaves, daquelas antigas, com mais de vinte centímetros de tamanho.
Abrimos a porta da frente e todas as janelas e portas do casarão para que aquele cheiro nauseabundo de coisa velha se dissipasse.
Em todos os cômodos da casa, cocô de morcego e no entorno, principalmente na varanda, cocô de gente.
Os cômodos da casa, duas salas enormes, oito quartos, cozinha e sala de jantar abrigavam os móveis, todos inteiros e bem conservados só precisando mesmo de limpeza, mas a casa não tinha sanitário.
Apenas um cubículo, distante da porta da cozinha, sugeria que ali houvera um local para que os moradores satisfizessem as suas necessidades fisiológicas e em cada quarto, dentro dos criados mudos, penicos de louça.
Na copa, em armários escuros a louça com muitas peças rachadas e na cozinha, panelas de ferro e de barro, algumas colheres de pau e enorme tonel de madeira sobre um cavalete onde provavelmente se colocava a água de beber.
Além do trabalho da vassoura e muita água, precisaríamos rever os limites da propriedade, repor as cercas, dar uma arrumada nas telhas da casa e repor as da cocheira, quebradas em sua maioria.
Os cochos feitos e cimento e as argolas para prender os animais estavam enferrujadas. Algumas delas deviam ser substituídas.
Silvestre, num raro momento de esperteza, havia trazido a escritura e a planta da propriedade a fim de facilitar o trabalho de demarcação.
Trabalhamos até que a fome nos avisou que já estava anoitecendo.
Marcamos o retorno da equipe para o dia seguinte, o mais cedo possível e esse compromisso foi renovado por todo o mês das férias até que quase todo serviço havia sido feito.
Ainda bem que a dona Maria, mãe de Silvestre, todos os dias trazia almoço reforçado para todos nós.
Transformamos os oito quartos em suítes sem alterar a feição da casa que havia sido tombada e embutimos os canos para a ligação de água cujo cano mestre, felizmente, passa bem em frente à porteira.
O poço logo adiante da porta da cozinha era profundo, escuro e muito sujo, mas que ao ser examinado, revelou-se uma importante rota de fuga e de proteção para os antigos habitantes.
Mais ou menos cinco metros abaixo da borda, meio disfarçada entre as pedras, havia a entrada de um túnel de onde foram recolhidos arcabuzes, espadas, adagas, botas, um chapéu daqueles de três pontas no estilo dos mosqueteiros franceses, um baú de couro, algumas moedas portuguesas e espanholas.
Todo esse acervo passou a fazer parte do museu que foi instalado na primeira sala do casarão e colocamos uma escada de ferro para que o túnel seja a principal atração da pousada.
Neste final de semana, vestidos à moda setecentista, receberemos os primeiros hóspedes...