Cinzas *
Havia acordado encharcado de suor – frio. Um sonho do qual não se lembra, só sabia que se sentia estranho. Olhou para aquela manhã cinza pela janela de batentes descascados e aquilo pareceu um quadro jogado no lixo. Ligou o rádio nos noticiários enquanto se barbeava. Queria ouvir algo inteligente, uma crítica do mundo que fugisse do senso comum das manchetes e mensagens repassadas. Sentia-se melhor sabendo mais quanto valia o dólar do que se iria ou não chover à tarde. No ponto de ônibus, duas vizinhas conversavam sobre a patroa e sobre o preço da carne. Do outro lado da rua, uma sibipiruna havia sido cortada e agora dava para ver toda a fachada da farmácia que havia se instalado semana passada. Já que cortam as árvores precisamos mesmo saber onde ficam as farmácias. No caminho até o trabalho, os mesmos rostos do trecho. As vizinhas agora conversavam sobre as profecias de um pastor. A mesma ruiva com a tatuagem nova alçava a bolsa com o nome do curso da faculdade que ela já tinha dito que era sua segunda opção. Passageiros subiam e desciam, e acenavam uns para os outros por se verem todas as manhãs. O trânsito está lento por causa de uma pequena batida entre dois carros quando o sinal fechou. Talvez estivessem acenando um para o outro se andassem de ônibus todas as manhãs, pensou. Resolveu descer no próximo ponto. O mendigo da esquina já havia acordado e mancava abraçado ao edredom até a padaria, para beber o café de cada dia e filar um cigarro. A manhã era cinza. A calçada era cinza. O ônibus era cinza. Os carros eram cinza. Os olhos do mendigo eram cinza. O prédio onde trabalhava era cinza. Era de um verde intenso aquela sibipiruna. Mas a haviam cortado para que não deixássemos de reparar que se vendiam remédios cinza. Eram muitos cinzas e muitas cinzas que ardiam os olhos marejados daquela cidade que acordava, como que de um sonho do qual não se lembrava, só sabia que se sentia estranha.
(publicado em: Palavra é Arte-Narrativas, 2017)