Batidas na porta
As batidas na porta, mesmo que suaves, romperam com o silêncio no fim da madrugada fria. Nem as aves tinham acordado, tampouco o galo despertador do dia, tinha dado sinal de alerta, e Mozo, já estava junto ao fogo de chão, chimarreando, na companhia da solidão, que ficava calada em seu canto, imóvel, com o olhar fixado no fogo. Não fazia idéia de quem seria, a esta hora, naquele fim de mundo, onde não se via ninguém há muito tempo, ainda mais com aquele frio.
Morava na casinha de sapê, que construíra para morar com seu grande amor, nas margens do arroio esperança, nas voltas de um rincão, cercado pela natureza, bem longe de todas as mazelas do mundo. Ali criou cinco filhos, que o destino espalhou pelo mundo, e deles não tinha mais notícia. Parecia que até o tempo tinha esquecido do mundo a parte que era este seu pequeno recanto de paraíso, a não ser pelas marcas no rosto, lavradas com ferro de trabalho, dia após dia, de sol a sol. Mas vivera feliz, com sua companheira de longos anos, cinqüenta anos de casamento, mas que a morte, lhe arrancara com vil desprezo, levando metade de sua alma. Este ser, cruel e desumano, esquecera-se dele ali, só para mata-lo em vida, deixando uma dor latente se arrastar pelos anos, longos trinta anos, de uma amarga espera, que só a solidão suportara, até a saudade com o tempo, fugira cansada, desaparecendo no mundo, como seus filhos.
Caso suas contas não estiverem erradas, havia completado cento e quatorze anos, neste ano, no inverno, mas não lembrava mais o dia exatamente. Foram muitos anos de vida, era chegada a hora de partir. Imaginava que a morte tinha levado sua amada para algum paraíso perdido, e que logo voltaria para busca-lo, então se pôs a esperar... e esperar... a morte, este ser asqueroso e nojento, esquecera-se dele. Quem sabe, nem a morte apareceria neste fim de mundo.
A solidão, tão triste, lhe fazia companhia, em silêncio absoluto, há anos sem sair de junto a ele, algumas vezes, ia até o galpão, ou até o riacho, mas logo voltava, agora não se movia, só olhava as chamas. Batidas na porta. O homem, diante do fogo com a cuia do chimarrão nas mãos, hesitante, não se movia, apenas via sua vida. Mais de cem anos, com uma certeza, foram mais tristezas do que alegrias. Trinta anos sem sua amada, pareciam mais de trezentos, os cinquenta de casados, apesar de tudo o que havia de amor entre eles, pareciam cinco. Mesmo os cinco frutos deste amor, foram arrancados, deixando marcas duras num peito tão calejado. Agora a morte lhe batia a porta. Estava tão próxima, só uma porta velha de madeira, os separava.
Não chegou a rir, porém achava engraçado, queria tanto morrer, esperando por anos e anos este momento, e agora diante da derradeira hora, tremia. Estava com medo, medo da morte. Queria esticar a vida mais uns anos, mais um pouco, mais uns minutos. Não sabia ao certo porque, mas queria viver mais. Talvez para não deixar a solidão sozinha, ela poderia se queimar pela manhã, ao acender o fogo. Mais tarde a vaca precisava ser ordenhada, e ainda tinha que preparar o café. No verão, que logo chegaria, precisava preparar a terra para o plantio. Ninguém alimentaria o gato que dormia encolhido sobre a lenha.
Uma lágrima furtiva lhe escorre pelo rosto. Bem que a morte poderia ter se esquecido da sua existência. Poderia fazer de conta que ali era seu esconderijo, destes das brincadeiras de menino, e que não pudera localizar. Poderia inventar uma desculpa qualquer, para deixa-lo viver mais uns anos, talvez mil anos, pois cento e quatorze anos, não foram suficientes para viver. Batidas na porta. Levantou-se da cadeira, lentamente não por falta de forças, mas com intenção de retardar mais um pouco este encontro final. A passos lentos, fez da pequena distancia até a porta, parecer uma eternidade, só para pensar mais um pouco sobre tudo que vivera, ou que poderia ter vivido. A solidão deixou escapar uma lágrima incontida, que escorria pela face esbranquiçada, e não falou nada. Ficaria sozinha, desamparada. Quem sabe logo teria uma companhia, afinal a saudade poderia voltar.
Assim que a porta foi aberta, a morte entrou sem pedir licença, não era feia como esperado, até seria bonita aos seus olhos, não fosse a pele tão pálida. Esta cor alva, talvez fosse decorrente do frio da madrugada que findava, ou da dor de tantas despedidas. Mozo deu dois passos para fora, na ânsia de olhar o mundo que o cercara, por muitos anos, mais uma vez que fosse. O sol já despontava detrás dos montes, com cara de sono, muito tímido, iluminando aos poucos as copas das árvores, despertando as aves, que envolviam a manhã, numa sinfonia alegre, aonde as gotas da tristeza, iam evaporando junto ao orvalho congelado que cobria os campos de branco. O galo, já atrasado, sinalizava o inicio de mais um dia. A vaca espreitava na porteira, o bezerro no galpão, á espera da ordenha. O cachorro companheiro saiu no terreiro, acenando o rabo alegremente, como quem diz bom dia, contrastando ao dono, que se amargurava por dentro. Nunca dera á devida atenção a tudo isso, amanhã certamente, não mais a teria diante aos olhos, nem lembraria de nada, ao menos era isso o imaginado.
Ao voltar para dentro, fechou a porta atrás de si, a morte estava diante do fogo, aquecendo suas mãos de donzela, conversando com solidão que há muitos anos não via. Depois arrumou um pouco a erva na cuia, e sentou-se entre elas, continuaria seu chimarrão, enquanto a morte se aquecia junto ao fogo.