Era uma Missa Domingueira

Era uma Missa Domingueira.

As grossas e altas paredes seculares da Igreja de São Pedro, amenizavam o calor que fazia lá fora. Estava inquieta e não conseguia se concentrar nas palavras do padre. Aquela Igreja lhe trazia muitas e doces recordações. Ali fez sua primeira colação de grau e, em culto ecumênico, recebeu de presente do pai, o anel de professora primária. Ali também havia entrado trêmula, vestida de noiva e, segurando o braço paterno, casou com seu “príncipe encantado”. Foi lá também que batizou sua filha mais nova e saiu depois, displicentemente, para comemorar com seus compadres argentinos pelos bares da cidade. Muito lhe marcaram também, as Missas Domingueiras que fizeram parte de sua adolescência.

Em todos aqueles eventos religiosos, houvera quase sempre a presença daquela simpática figura do padre Valdenito, parente distante da família de seu pai. “Como ele está envelhecido!”, constatou depois de quase trinta anos sem vê-lo. Era notória sua dificuldade para se manter de pé e falar. Ainda assim, fazia aquilo que sabia e que gostava:

“Oremos irmãos! Naqueles tempos..”

Sentiu um suor frio percorrendo-lhe o corpo e lembrou-se que, diferente da missa daquele dia, as missas dominicais da sua pequena cidade natal eram uma das mais felizes recordações que tinha de sua adolescência. Sempre lotadas, guardavam em seu bojo a energia e o cheiro da gente jovem que vinha praticar sua fé religiosa e comungar seus encontros amorosos. Como eram felizes aqueles encontros missais da sua juventude! Quantas flores, quanta alegria e quanta energia ocupavam aqueles espaços! - suspirou melancólica. Lembrou das músicas cantadas pelo calor e alvoroço daquelas vozes juvenis. Corais, compostos de jovens que disputavam qualquer semelhança com os Robertos, Erasmos e Vanderleias dos saudosos programas da Jovem Guarda das tardes de domingo.

Lembrou, com ternura, da passagem do sagrado ritual religioso no final das missas, para os sagrados rituais da sedução juvenil - comunicação sensual e amorosa que se passava, sutilmente, através das letras das canções dos seus ídolos. A paquera, invariavelmente, se iniciava pelos rapazes dentro de seus “fusquinhas” que, seguindo as meninas, oportunamente entoavam, em coro e maliciosamente, alguns trechos musicais. Elas, por sua vez, também em coro, respondiam usando o mesmo tom de sensualidade e malícia, fazendo daquela comunicação um delicioso jogo de sedução:

_ Menina linda eu te adoro, menina pura como a flor...

_ Oh, Cupido vê se deixa em paz, meu pobre coração que não agüenta mais...

_ Estou guardando o que há de bom, em mim, para lhe dar quando você chegar...

_ Se você me ama de verdade quero ver...

A brincadeira era por vezes interrompida pela voz zangada de seu pai, que surgia, inesperadamente, cantando:

_ Noite alta, céu risonho ... E lá vai cascudo sem-vergooonhos! Marina, vai já para casa!

Marina, cantarolava baixinho, sorridente, absorta em suas memórias e reminiscências. Despertara com a cotovelada da irmã lembrando-a que precisava concentrar-se naquela missa. Sentiu, novamente, um tremor febril pelo corpo e suspirou ante aquela constatação: aquela missa era tão diferente daquelas de outrora, tão triste, tão estranha! Olhou ao redor e o que viu não ajudou: igreja quase vazia, pouca gente da família, raros amigos, algumas pessoas desconhecidas e algumas beatas. Sentiu o coração apertar: onde estava aquela gente tão feliz? Onde estava aquela juventude, seus sonhos, sua irresponsabilidade sadia?

Não se conformava.

Sobressaltou-se com a cantoria das beatas:

_No Céu, no Céu, com Jesus Cristo estarei!

_Como cantam mal essas beatas! - pensou.

Sentadas nas duas primeiras filas dos pesados bancos de carvalho, lá estavam elas, as velhas beatas. Sempre as mesmas. Pareciam se esforçar para irritarem os ouvidos alheios. Austeras, como de costume, ostentavam mantilhas negras nas cabeças, grossos salmos e terços pesados nas mãos. No olhar, sempre o mesmo ar severo e mal-humorado.

Adquiriu, desde cedo, uma certa implicância com elas - herança de seu pai. Observou-as com olhar zombeteiro e achou engraçadas suas vozes fanhosas recitando aquelas ladainhas. Sabiam de cor cada palavra do Missal e completavam, automaticamente, em coro, cada frase do padre antes mesmo que ele as terminasse.

_O Senhor esteja conv...

_Ele está no meio de nós!

Acudiu-lhe uma reminiscência engraçada. Seu pai gostava de irritar as beatas imitando suas vozes que ele chamava de “taquaras-rachadas”. Remendava suas cantorias e atrapalhava suas ladainhas. Não duvidou que se ele estivesse ali, implicaria com elas, como daquela vez em que quase as enlouqueceu completando cada “Amém” pronunciado por elas, com um “... doim!”, formando a palavra “Amendoim”.

Despertou com a voz do padre:

_Por todos os séculos e seculói...

_Amém... - responderam as beatas.

_...doim! - completou Marina, baixinho, sem resistir.

_Oremos irmãos!

Padre Valdenito parecia disposto a chamar-lhe a atenção para a missa que rezava. Sentia carinho por ele e lembrou que seu casamento fora celebrado pelo próprio, há 25 anos atrás. Um fio de remorso havia sentido por não ter atendido seu convite para “uma conversa com o casal”, na véspera da cerimônia. Era praxe dele. Gostava de ter um tête-à-tête com os noivos para ter certeza se podia colocar seu “selo de garantia” naquela união que iria abençoar. Ao invés, Marina preferiu ceder à tentação de subir a Ladeira da Sé e namorar ao sabor de queijo de coalho assado. Arroubos irresponsáveis da juventude! Quis compensar, quase um quarto de século depois, indo conversar com ele na véspera daquela missa.

_ Padre, o senhor lembra de mim? Sou Marina Wanderley.

_ Me disseram que você havia morrido...

_ Não, padre, essa foi a minha avó que tinha o mesmo nome. O Senhor fez meu casamento aqui nesta igreja...

_ Ah! E você foi feliz no casamento, minha filha? Ainda está casada?

_ Sim padre, muito feliz e continuo casada.

_ Então, Deus lhe abençoe mais uma vez, minha filha.

_ Porém, padre, hoje vim aqui por outro motivo. Quero lhe falar sobre outro homem a quem muito amei...

Foi despertada, mais uma vez, pela cantoria das beatas e desta vez, suas vozes a transportaram para um outro coro, agora com vozes infantis:

_ Hoje, tem cozido e galinha! Hoje, tem cozido e galinha!

_ Há-há-há... Mais alto meninos!

_ Hoje, tem cozido e tem...

_ Não quero lingüiça não, pai!

_ Psiii... Fale baixo!

_ Mas, eu não gosto de lingüiça! – bradava o irmão mais novo que não entendia a brincadeira do almoço de domingo.

A provocação começava do outro lado da parede daquelas casas gêmeas da Praça dos Milagres. A voz do vizinho (eterna briga de seu pai) retumbava em altos brados:

_ Ô Andresa! O almoço de “caçarola-italiana-com-o-rocambole-de-batatas-e-titela-de-galinha”, já está pronto?

Nunca entendeu direito, em criança, o significado daquela mensagem, mas sabia que era o código para que ela e seus irmãos disparassem o coro do “cozido-com-galinha” coordenado por seu pai. Lembrou com um misto de saudade e ternura, daqueles tempos de dureza na família: ela, mais quatro irmãos, todos pequenos, em fase escolar. Seu pai, dentista do antigo IAPFESP, mal vivendo do baixo salário de funcionário público, andava atormentado com a ameaça de desemprego diante do boato de que o governo ia extinguir aquele órgão. Para a criançada, porém, tudo era festa, mesmo quando o sádico vizinho se empenhava para torturar seu pai. Escolhia sempre - sabe-se lá por quê! - as horas das refeições para entoar as mais variadas estrofes:

_ O IAPFESP, vai se acabar... E não vai ter mais canja pro jantar!

A resposta de seu pai, obviamente, era também em tom musical:

_ E o corno velho da casa ao lado, vai apanhar!

E a criançada:

_ Vai apanhar! Vai apanhar!

_Oremos, irmãos! Dêem-se as mãos para rezarmos o PAI NOSSO!

Ergueu-se para dar as mãos aos próximos e rezar. Gostava daquele momento fraterno. Do lado direito, a alva mão de sua irmã, Simone. Do lado esquerdo, uma senhora de tez muito escura, oferecia-lhe a mão calejada. Chamou-lhe a atenção a alvura da palma de sua mão que destoava do resto da cor de seu corpo. Marina, transportou-se, mais uma vez, para um tempo onde se sentava no colo de seu pai e fazia todas as perguntas do mundo, seguidas de seus intermináveis “por quês”.

_ Pai, por que os negros têm as palmas das mãos e as plantas dos pés, brancos?

Politicamente incorreto e nem sempre com o compromisso de respostas históricas ou científicas, seu pai era homem de responder a qualquer pergunta da criançada, sempre com sua costumeira irreverência, levando para o lado da brincadeira ou da fabulação:

"No início do mundo, todos eram negros. Um dia, encontraram um grande lago no Paraíso que alvejava as pessoas que nele tomassem banho. Aqueles que chegaram primeiro ficaram muito brancos. Os que chegaram depois foram ficando morenos, amarelos, mulatos, etc. Passado o tempo e com tanta gente tomando banho, as águas do lago foram se acabando. Aqueles que chegaram por último só conseguiram molhar as palmas das mãos e a planta dos pés."

Sinos tilintando. Era hora da Consagração e logo em seguida, a Comunhão.

Marina não gostava de se ajoelhar; sentia aflição nos joelhos que, muito magros, sempre estalavam e eram uns dos alvos preferidos de gozação dos irmãos:

_Canela de sabiá-á! Não para de estalar-á!

_ Pai, os pestes estão me chamando de “canela de sabiá”!

_ Não ligue, não, minha filha! Sabiá é passarinho bonito que canta e voa!

_ Seus vermes!

Conformava-se.

Sinos novamente tilintando. Gostava de ver a cena do Cálice sendo erguido pelas mãos do padre como se fosse um troféu ganho numa corrida de Fórmula Um. Depois viria a famosa cena da fila para a comunhão.

_ Será que as beatas não vão se estapear para disputar os primeiros lugares na fila? – comentou, maliciosamente, com a irmã.

_ Marina, deixe as beatas em paz!

A missa chegava ao fim. Pensou em seu pai. Era o sétimo dia de sua ausência. Homem simples, não tinha fortuna e nem religião. Sua riqueza era seu senso de humor e sua ideologia, seu violão. Não conseguiu deixar grandes bens materiais para a família, “... só a casa que será um porto seguro para quando vocês precisarem se fortalecer ou se erguerem novamente!”.

Foi embora fazendo, antes, sua última piada:

_ Mandem lembranças a quem perguntar por mim! Digam que dei o braço àquela mulher vestida de preto e fui embora com ela!

Marina, havia pedido ao padre Valdenito, para rezar pela memória dele. Porém, havia constatado que, em sua memória, seu pai sempre haveria de fazê-la sorrir. Ele foi o primeiro homem em sua vida a quem ela muito amou. E havia deixado algo muito precioso para ela: o senso de humor e uma queda pelo violão.

_Oremos, Irmãos! Antes de irem embora vamos cantar uma música em memória ao Dr.Wanderley, que está repousando em paz nos braços de sua Mãezinha do Céu.

E as beatas, com suas vozes estridentes e fanhosas entoaram:

_"Oh, minha Mãezinha do Céu, contigo hoje estarei... No céu, no céu..."

Marina não se conteve e desatou num riso descontrolado e nervoso que se confundia com choro. As beatas olhavam-na consternadas e aumentavam o timbre da cantoria.

Logo aquela música? pensou. Justo aquela preferida por seu pai para irritar as beatas? Sentiu desta vez um tremor diferente pelo corpo, abraçou sua irmã e comentou:

_ Ele está aqui, não está sentindo? E está rindo de todos nós!

Parecendo concordar, sua irmã respondeu:

_ Amém...

E Marina, em memória ao pai:

_ ...doim!