O jovem Said

Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza (CE), 4 de outubro de 2015

O jovem Said, 23 anos, tímido, fala mansa, bela estampa, embora um pouco magro e empalidecido, pela falta de exposição ao sol, o que facilmente seria corrigido pelo sol escaldante que teimava em deitar seus raios todos os dias por aquelas bandas, chegou à pequena cidade para trabalhar na recém instalada fábrica de laticínios, uma das maiores do país. Sua formação, concluída poucos meses antes de deixar sua cidade natal, o credenciara com diploma obtido depois de muito esforço e perseverança, a exercer o cargo de economista.

Sem experiência, embora considerado o melhor aluno que já passara pela universidade federal de seu estado, iniciaria suas atividades profissionais subordinado ao senhor Afonso, chefe do setor de pessoal, vindo da matriz e bastante experiente na atividade, mas sem formação profissional, exigência apontada em lei recentemente promulgada.

A primeira providência de seu Afonso foi saber se Said já estava comodamente instalado na cidade.

— Acabei de chegar, senhor Afonso, não conheço nada na cidade. Gostaria que o senhor me indicasse um pequeno hotel, uma pensão ou mesmo uma casa de família, para eu ficar até encontrar lugar definitivo para morar.

— Nós temos alguns funcionários que formaram uma “república”, muito comum hoje em dia por aqui, depois da instalação do laticínio, apontou o senhor Afonso. E continuando, informou: — Há uma formada por funcionários do quadro técnico de nível superior, outra de funcionários do quadro operacional e mais uma do pessoal administrativo. Acredito que você queira ficar na do pessoal do quadro técnico. Onde, por sinal, deve ter vagado um quarto, um engenheiro que trabalhava aqui foi mandado para a matriz. São oito rapazes, isto é, agora sete, todos mais ou menos da sua idade. Tem administrador de empresa, engenheiro de alimentos, engenheiro mecânico, engenheiro eletricista, administrador de empresa, enfermeiro, todos nossos funcionários. Nunca houve problema entre eles, embora gostem de promover festas e churrascadas no fim de semana, pois há dois gaúchos, um mineiro, um paulista, um pernambucano, um baiano e um alagoano. A casa é bastante grande e há espaço suficiente para guardar o seu carro, caso você tenha um.

Said, embora tentasse, não conseguia dizer uma palavra, o seu Afonso falava depressa e não dava espaço para ele perguntar. Em uma das pausas do chefe do departamento de pessoal, o recém-contratado perguntou:

— Qual o valor da diária?

— Isso eu não sei, só perguntando ao Domingos, uma espécie de presidente da república. Ele é o engenheiro eletricista do laticínio, durante o almoço, aqui mesmo na fábrica, você conversa com ele, completou o senhor Afonso, já preocupado com o adiantado da hora, 11h50, a sirene para o almoço tocaria às 12h. Mais que depressa o chefe do DP arrumou a sua mesa, um pouco bagunçada, para o gosto de Said, e se dirigiu ao restaurante, ficando o recém-contratado ali em pé, sem saber se acompanharia aquele homem baixinho e de modos não muito delicados ou procuraria outra pessoa para obter mais informações sobre o seu local de trabalho, não informado pelo chefe que acabara de sair, onde ficava o restaurante, e se já tinha permissão para almoça na fábrica. Procurou a secretária, mas ela também já havia saído, todos já haviam saído, a sirene tocou e ele continuava ali, timidamente, sem saber o que fazer. A fábrica era muito grande e ele não queria se aventurar a cometer qualquer deslize, andando sem rumo. O jovem procurou uma cadeira e sentou-se, resolvera esperar pela volta do chefe.

Depois daquele incidente e já devidamente instalado na “república dos amigos da bagunça”, Said, aos poucos foi se integrando ao trabalho e aos costumes da pequena cidade. Entre as garotas que frequentavam o clube local, do qual ele agora era sócio, a conversa remoinhava sobre o “pão” que trabalhava no laticínio. Sempre vestido de forma diferente dos citadinos, calça ajustada nas pernas, bem próximo às calças tipo calça legging dos dias de hoje, camisa branca e manga comprida, acompanhada por colete, que ele variava nas cores, dependendo do dia e local a ir, sapato de lona, de cor combinando com o colete, que na altura de seus 1m87cm e vasta cabeleira, emprestava-lhe a aparência de um pop star. “As mina piravam, os manos o odiavam”.

Na fábrica ele trabalhava tranquilamente, os colegas o respeitavam. Na cidade, os rapazes locais não o deixavam em paz. Inventavam estórias, chamavam-no de afeminado e de outros impropérios. Ele não ligava, procurava sempre estar acompanhado pelas garotas mais bonitas do local, a concorrência era acirrada, todas queriam ser a primeira a namorá-lo. Havia uma exigência, que a escolhida fosse rica e tivesse bunda alta e pernas grossas.

Sua iniciação sexual parece que se deu na “república dos amigos da bagunça”, com a ajuda do companheiro de república Domingos, que arranjara e trouxera para Said uma garota de programa, com a recomendação que ele não fosse tão afoito. Era sábado e o casal ficou à noite toda no quarto, ao sair, na manhã do domingo, o rapaz, ainda sonolento, enrolado em uma toalha e com cara de quem havia comido doce até se lambuzar, olhou para os colegas que ainda faziam o desjejum, exclamou:

— Pessoal, isso é muito bom, realmente muito bom!

Daí por diante ele se tornou um pegador, um matador, um devorador de garotas de programa. Todas o conheciam e o disputavam quando ele aparecia em seu karmann ghia branco, na avenida.

Quando a animosidade dos garotos locais começou a passar dos limites, como riscarem e jogarem pedra em seu carro, ele passou a ser mais cuidadoso, moderou na indumentária, ser discreto no vestir e a procurar amizade entre os seus detratores, que frequentavam o mesmo local que ele. De início, selecionou apenas cinco, os com comportamento mais próximo ao dele; não beber, não fumar, não ser farrista e ter trabalho fixo, isto é, não ser sustentado pela família. Isso lhe daria a segurança que não seria explorado, pois ganhava bem e alguns que havia procurado sua amizade assim procederam.

Com o passar do tempo, o crescimento profissional de Said era visível. Tornou-se chefe, diretor de recrutamento e seleção, alcançando o cargo de vice-presidente da empresa. Sempre aplicado e dedicado aos estudos, seu currículo profissional foi acrescido de inúmeros cursos de pós-graduação, até mesmo em instituições de renome internacional, como Sorbone, Havard e Institut für Sozialforschung, como integrante da Escola de Frankfurt. Publicou vários livros e artigos sobre sociologia e economia regional, nacional e mundial.

Sempre simples e sem vaidade, ainda guardando a ingenuidade de quando chegara. Said, aos setenta anos, se aposentou, indo morar num sítio que comprara quando ainda trabalhava. Nem mesmo o convite para se transferir para a matriz, ocupar uma vice-diretoria, o fez se afastar daquela comunidade que lhe ensinara que a vida pode ser simples, produtiva, divertida e, acima de tudo, prazerosa. Ele nunca se casou, não teve filhos, mas mantém algumas de suas visitantes de fim de semana da época da república sob os seus cuidados, para cuidarem dele na velhice, muito bem instaladas em bela e confortável casa construída em seu sítio, afastado uns 30 km do local de trabalho, fugindo da prosperidade que a cidadezinha que o acolheu vem alcançando.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 12/10/2015
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