PÉ DE CANA
Por José Wagner Ramos da Silva
“Abram alas que a saudade vai passar¨
ou Pra não dizer que não falei de companheirismo”
Eh! Pé-de-cana, eh! Eh! Pé-de-cana!
Eh! Pé-de-cana, eh! Eh! Pé-de-cana!
Com estes versos pobres, o bloco seguia pelas ruas da pequena cidade.
Saía geralmente no sábado.
A monótona cantilena era cadenciada apenas por um bumbo, que, como um arauto, avisava à cidade que os três dias seriam de grande folia. Ainda me lembro da euforia de meu pai, convocando os membros efetivos do cordão, sim, efetivos e vitalícios, pois a efetivação só cessava com o passamento do sócio, cuja ¨causa mortis¨ geralmente se dava por complicação hepática.
Quem ficava extremamente amargurada era minha mãe. Mulher simples, protestante convicta, que via o nome de meu pai envolvido nos maledicentes comentários de nossa temida vizinha, dona Ana Bucho, a gazeta da cidade, que não saia da janela, e era a primeira a trazer as últimas do lugarejo, ou seja, quem pediu a mão de quem, quem pariu antes das nove luas, moça que não era mais moça, quem pediu emprestado e não devolveu e quem subtraiu do alheio.
Eu, com meus sete anos, tinha muito medo da famigerada vizinha, e só muitos anos mais tarde, entendi que seu nome, era uma corruptela do nome de seu finado marido alemão, Karl Bush, e não uma alusão ao tamanho de dona Ana, senhora obesa, de pernas opadas, tendo toda sua adiposidade acondicionada em um volumoso penhoar, seu traje oficial.
Os únicos que não temiam dona Ana e até a desafiavam, eram os componentes do famoso cordão.
Ah! Antes que me esqueça, o bloco não tinha nenhuma alegoria, nenhum destaque, mas condição ¨sine qua non” para o desfile, era o traje feminino.
Sim, iam todos vestidos de mulher, ou melhor, caricatos de mulher, trazendo como cetro, na mão esquerda um pé de cana, e na direita uma garrafa da branquinha.
A maquilagem era feita, sem pejo algum, no meio da rua, e a maior dificuldade eram os sapatos, geralmente emprestados das esposas, que calçavam 35, 36 e acomodavam pés 41,42.
Quem, porém, causou polêmica, foi o Germano, que querendo inovar, apareceu vestido de anjo.
Foram tamanhas gritarias e animosidade, que houve até ameaça de o bloco não sair, ao que o anjo assistiu, totalmente alheio, devido já chegar sob os efeitos etílicos.
O pobre Germano desfilou somente um quarteirão, caindo na sarjeta, abraçado e sorrindo a uma garrafa vazia.
O povo mais requintado do local fingia ignorar o bloco, mas muitas famílias, mesmo as de ¨bem¨, tinham quase sempre um representante no desfile.
Hoje esse bloco politicamente incorreto, teria pouca chance de desfilar. A espontaneidade daquele povo de outrora, não tem mais lugar diante da sofisticação e da tecnologia dos tempos de hoje.
Ao final dos anos sessentas, o bloco foi perdendo força, devido inúmeras baixas.
Mas, seu carnaval de glória, foi no ano em que uma ala da Mangueira compareceu à cidade a convite e às expensas da prefeitura local.
Foi o dia em que o bumbo bateu mais forte, e assumiu a batuta, seu membro fundador, o pardo, Zé da Águia, sujeito briguento, mulherengo e grande bebedor.
Apareceu vestido de francesa, à Josephine Baker, com uma peruca ruiva, sapatos de saltos altos e bolsa de cetim vermelho, boina de lado, e um vestido tomara que caia, rabo de peixe, recamado de canutilhos, emprestado da professora Marina, filha do João Pescoço, (usado por ocasião de seu baile de formatura).
Os demais componentes não entenderam o capricho do mulato, preocupados que estavam com a apoteose, que acontecia próxima ao jardim da praça, numa bebedeira fenomenal; não perceberam também que o mestre-sala da famosa escola, se embeveceu pela francesa, dizendo-lhe coisas irreproduzíveis, e foi correspondido com um tremendo bofetão do Zé, que era mestre em disputas de rua.
Foi um corre-corre geral, crianças gritando, mães desesperadas, tudo se transformou em grossa pancadaria, culminando com a detenção dos componentes do pé de cana, que só foram liberados na quarta-feira de cinzas, quando já era quaresma.
Desde então o bloco não mais saiu, restando dele somente saudades, e toda vez que ouço o bater de um bumbo anunciando o carnaval, lembro-me de minha infância, de meu pai e de sua admirável turma marginal e subversiva.
_____________
José Wagner Ramos da Silva, natural de Cruzeiro- S. P. nasceu em 18/3/1947. Militou no Magistério por 42 anos, professor alfabetizador, professor de Língua e Literatura Portuguesa, Bacharel em Letras, escreveu durante algum tempo no Diário de Suzano, na coluna literária e no jornal Notícias do Alto Tietê. Lançou em setembro de 2014, o livro de crônicas intitulado ¨Crônicas do Coração
Por José Wagner Ramos da Silva
“Abram alas que a saudade vai passar¨
ou Pra não dizer que não falei de companheirismo”
Eh! Pé-de-cana, eh! Eh! Pé-de-cana!
Eh! Pé-de-cana, eh! Eh! Pé-de-cana!
Com estes versos pobres, o bloco seguia pelas ruas da pequena cidade.
Saía geralmente no sábado.
A monótona cantilena era cadenciada apenas por um bumbo, que, como um arauto, avisava à cidade que os três dias seriam de grande folia. Ainda me lembro da euforia de meu pai, convocando os membros efetivos do cordão, sim, efetivos e vitalícios, pois a efetivação só cessava com o passamento do sócio, cuja ¨causa mortis¨ geralmente se dava por complicação hepática.
Quem ficava extremamente amargurada era minha mãe. Mulher simples, protestante convicta, que via o nome de meu pai envolvido nos maledicentes comentários de nossa temida vizinha, dona Ana Bucho, a gazeta da cidade, que não saia da janela, e era a primeira a trazer as últimas do lugarejo, ou seja, quem pediu a mão de quem, quem pariu antes das nove luas, moça que não era mais moça, quem pediu emprestado e não devolveu e quem subtraiu do alheio.
Eu, com meus sete anos, tinha muito medo da famigerada vizinha, e só muitos anos mais tarde, entendi que seu nome, era uma corruptela do nome de seu finado marido alemão, Karl Bush, e não uma alusão ao tamanho de dona Ana, senhora obesa, de pernas opadas, tendo toda sua adiposidade acondicionada em um volumoso penhoar, seu traje oficial.
Os únicos que não temiam dona Ana e até a desafiavam, eram os componentes do famoso cordão.
Ah! Antes que me esqueça, o bloco não tinha nenhuma alegoria, nenhum destaque, mas condição ¨sine qua non” para o desfile, era o traje feminino.
Sim, iam todos vestidos de mulher, ou melhor, caricatos de mulher, trazendo como cetro, na mão esquerda um pé de cana, e na direita uma garrafa da branquinha.
A maquilagem era feita, sem pejo algum, no meio da rua, e a maior dificuldade eram os sapatos, geralmente emprestados das esposas, que calçavam 35, 36 e acomodavam pés 41,42.
Quem, porém, causou polêmica, foi o Germano, que querendo inovar, apareceu vestido de anjo.
Foram tamanhas gritarias e animosidade, que houve até ameaça de o bloco não sair, ao que o anjo assistiu, totalmente alheio, devido já chegar sob os efeitos etílicos.
O pobre Germano desfilou somente um quarteirão, caindo na sarjeta, abraçado e sorrindo a uma garrafa vazia.
O povo mais requintado do local fingia ignorar o bloco, mas muitas famílias, mesmo as de ¨bem¨, tinham quase sempre um representante no desfile.
Hoje esse bloco politicamente incorreto, teria pouca chance de desfilar. A espontaneidade daquele povo de outrora, não tem mais lugar diante da sofisticação e da tecnologia dos tempos de hoje.
Ao final dos anos sessentas, o bloco foi perdendo força, devido inúmeras baixas.
Mas, seu carnaval de glória, foi no ano em que uma ala da Mangueira compareceu à cidade a convite e às expensas da prefeitura local.
Foi o dia em que o bumbo bateu mais forte, e assumiu a batuta, seu membro fundador, o pardo, Zé da Águia, sujeito briguento, mulherengo e grande bebedor.
Apareceu vestido de francesa, à Josephine Baker, com uma peruca ruiva, sapatos de saltos altos e bolsa de cetim vermelho, boina de lado, e um vestido tomara que caia, rabo de peixe, recamado de canutilhos, emprestado da professora Marina, filha do João Pescoço, (usado por ocasião de seu baile de formatura).
Os demais componentes não entenderam o capricho do mulato, preocupados que estavam com a apoteose, que acontecia próxima ao jardim da praça, numa bebedeira fenomenal; não perceberam também que o mestre-sala da famosa escola, se embeveceu pela francesa, dizendo-lhe coisas irreproduzíveis, e foi correspondido com um tremendo bofetão do Zé, que era mestre em disputas de rua.
Foi um corre-corre geral, crianças gritando, mães desesperadas, tudo se transformou em grossa pancadaria, culminando com a detenção dos componentes do pé de cana, que só foram liberados na quarta-feira de cinzas, quando já era quaresma.
Desde então o bloco não mais saiu, restando dele somente saudades, e toda vez que ouço o bater de um bumbo anunciando o carnaval, lembro-me de minha infância, de meu pai e de sua admirável turma marginal e subversiva.
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José Wagner Ramos da Silva, natural de Cruzeiro- S. P. nasceu em 18/3/1947. Militou no Magistério por 42 anos, professor alfabetizador, professor de Língua e Literatura Portuguesa, Bacharel em Letras, escreveu durante algum tempo no Diário de Suzano, na coluna literária e no jornal Notícias do Alto Tietê. Lançou em setembro de 2014, o livro de crônicas intitulado ¨Crônicas do Coração