GRITOS NA MADRUGADA

A crise se alastrou pelo país como erva daninha sem que as pessoas percebessem e atingiu em cheio as pequenas e grandes empresas que, por queda dramática nas vendas e endividamento pela alta do dólar, acabou reduzindo o número de empregados ou, simplesmente, fechando as portas.

Foi o caso da "Comercial Morena", tradicional no ramo de material de construção na periferia da capital, que demitiu vinte dos seus quarenta funcionários, a fim de reduzir os gastos com a folha de pagamento e com a Receita Federal e utilizar o dinheiro para quitar as parcelas do caminhão semi-novo recém-adquirido pelo banco.

Everaldo, que trabalhava na empresa há dois anos, foi um dos demitidos, embora tivesse um histórico funcional exemplar, de total dedicação, assiduidade e pontualidade. Inúmeras vezes, lembra-se, desolado na mesa do bar, de ter ido trabalhar doente e permanecer na empresa descarregando carretas de tijolos muito além do seu horário, sem receber hora extra, só um agradozinho insignificante, "para a cerveja", dizia o chefe, sempre sorridente, com seu bigodinho preto de Gomez Addams.

O rapaz não previra isso, mesmo diante das sucessivas reportagens dos telejornais, com seus âncoras pessimistas, que martelavam o assunto até não restar um único grão. A opinião daquela gente de óculos e gravata não lhe interessava. Não havia crise nenhuma, todo esse palavrório era ressentimento da oposição. E ele se divertia assistindo a novela das sete, a que mais gostava, fazendo cócegas na barriga da Cacau, sua filhinha de um ano, que ria até chorar, se contorcendo no sofá, ao seu lado, enquanto ali perto, no cômodo vizinho, a mulher preparava o jantar, também de olho na TV. Rescendia em toda a casa um cheiro bom de bife acebolado.

E agora? Ele se perguntava, entre um copo e outro de cerveja. Bateu-lhe o desespero, ao lembrar da prestação da casa própria, financiada há um ano e meio pela Caixa Econômica, dívida contraída para mais de trinta anos, em parcelas a perder-se de vista. E o CDC feito no Banco do Brasil mês passado, em vinte e quatro meses, para terminar o quarto da Cacau e comprar o guarda-roupa? Meu Deus, ter o nome sujo, registrado no SERASA e no SPC só dificultaria a coisa! Olhava sem ver as pessoas nas mesas. Ali, dois rapazes jogando dama; acolá, um casalzinho de estudantes tomando coca-cola e trocando carinhos; mais adiante, um senhor grisalho, falando ao celular. Além de tudo isso a rua iluminada, com carros e gente no vaivém perpétuo. Um farol cegou momentaneamente a vista de Everaldo, que voltava do banheiro, uma peça fétida e minúscula perdida nas sombras do pátio, e ele deslizou na poça de lama e estatelou-se no chão, sujando-se todo. Era a vida lhe dando uma rasteira, que nem os zagueiros do São José, no campinho da várzea? Xingou alto, esmurrando o ar, em total impotência.

De volta à mesa secou o copo de pinga e tomou mais uma cerveja. Cadê os companheiros? Em hora de desgraça é cada um na sua? Sabe quem disse que todas as famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira? Não? Foi Tolstói, cambada de ignorantes! O queridinho de Nabokov, que detestava Dostoiévski. Vocês não leem, não? Perguntava e respondia, a voz engrolada pelo álcool. Os garçons eram os únicos que o olhavam e riam, sem se importarem muito. Dali a pouco saíam a atender outros clientes e se esqueciam do bêbado que lia literatura russa.

Era já madrugada quando Ezequiel, trôpego, foi-se embora pela rua deserta e escura. Os cães latiam ameaçadores, caninos à mostra e focinho espremido nas grades dos portões, que refletiam a luz azulada da lua, a zanzar lenta e solitária pelo céu. Uma sirene de ambulância soou alto, nas proximidades, e foi diminuindo o tom, à medida que se distanciava, até calar-se por completo. Dois rapazes, caveiras tatuadas nos bíceps e capuzes nas cabeças, fumavam maconha escorados no muro de uma escola. Ratos remexiam o lixo e desapareciam pelos buracos dos esgotos.

Quando chegou em casa, horas depois, bêbado e sujo, Ezequiel despejou toda a sua raiva e frustração na mulher, que queria saber onde ele estivera até aquela hora. Vendo-o naquela situação, acusou-o de estar na farra com os amigos ou nos braços de alguma vagabunda. Ele mandou-a calar a boca. Discutiram. O canarinho belga que dormia em paz em sua gaiola pendurada na varanda acordou assustado, arrepiando as penas. Dir-se-ia que as plantas, em suas ramagens, e as estrelas, em suas constelações, encolheram-se e taparam os ouvidos para não ouvir os gritos da mulher na madrugada.