Somos mais do mesmo
Um homem barulhento (cresceu numa família tipicamente italiana) descia a rua com um exagero de sacolas penduradas nos braços.
Ele era gorducho, ia pendendo ocasionalmente para os lados devido ao peso da bagagem, tinha o bigode ainda sujo por ter comido biscoito de polvilho duas horas mais cedo, enquanto assistia Chaves: mania que fingia não ter. Levava bronca de sua mulher, que fazia questão de colocar, no meio do sermão, a anormalidade de dígitos que apareciam no visor da balança quando ele sorrateiramente entrava em alguma farmácia.
Tinha os braços estranhamente peludos demais, uma devoção quase religiosa pelos pés de sua esposa e seu coração derretia só de mencionarem nome de seu gatinho: Almôndega.
Já ofegante e com as bochechas vermelhas, finalmente parou defronte ao portão azul de sua casa. Largou as sacolas no chão e procurou o molho de chaves no bolso.
Não achou. Deixou um palavrão italiano escapar.
Bateu palmas ardidas. Esperou: nada.
Gritou o nome de sua esposa: nada.
Pela primeira vez se arrependeu de ter esquivado da tecnologia atual e não ter comprado um celular. Sempre dizia que era a razão de vivermos entre uma geração tão besta.
Pensou em sentar-se no chão – mas aí não saberia se conseguiria levantar sem ajuda.
E então, de canto de olho, viu pequenas bolas verdes serem arremessadas pelo muro do vizinho: limões.
Um, dois, três... Iam atravessando a calçada e caindo no meio-fio.
Não tolerou tal desperdício com comida. Foi logo gritando:
– Ei, que palhaçada é essa? Não tens vergonha de desperdiçar comida?!
Não obteve resposta.
– Ei!
Os limões já formavam montinhos.
Teve uma ideia dolorosa: Tacar um dos limões de volta.
Quando se abaixou, com dificuldade, para agarrar um limão, outro lhe acertou a
cabeça.
Jogou, então, com força – agora motivado pela raiva e pela dor.
Ouviu barulho de folhas sendo amassadas. O limão não chegou ao seu destino.
Os limões pararam de atravessar o muro. Ele ouviu passos sobre as folhas amassadas do quintal verde do vizinho.
Cessada a cascata de limões, decidiu pegar todos para si.
Abaixou sobre o meio-fio e foi catando os limões com suas mãos gordas.
Distraído, virou-se para o outro lado em busca de um limão que escapara e viu os pés suspirantes de sua amada dentro de um chinelo rosa.
– Que é isso?! – perguntou ela, confusa.
– O vizinho estava atirando limões na rua. Eu, bem, vou fazer uma bela limonada com eles -explicou ele, colocando quatro frutas no colo da esposa.
– Mas por que diabos ele estava atirando limões na rua?
– Não sei e tenho raiva de quem sabe!
– Agora eu fiquei curiosa... Vou lá perguntar.
– Não! Vai que são birutas... – ele a segurou pelo braço.
– Ora, claro que não! Cumprimentam-me todas as manhãs...
Ela disfarçadamente colocou os limões dentro de uma das sacolas de mercado.
Carlo bufou. Abaixou-se com um gemido, colocou o resto dos limões nas sacolas quase vazias do mercado - eram poucas - e entrou na casa.
Almôndega dormia no parapeito da janela.
Então a esposa se dirigiu à casa do vizinho, duas vezes maior que a sua.
Tocou o interfone. Ouviu certa movimentação dentro da casa.
Uma voz rouca atendeu:
– Posso ajudar?
– Oi! Então... Eu estava passando e vi que estavam atirando limões pelo
muro... Achei esquisito...
Nesse momento o interfone desligou e deixou Maria falando sozinha.
– Que falta de educação! – disse ela, em alto e bom som.
Maria resolveu voltar para casa: Apesar de ser esquisito, ela tinha, agora,
uma cozinha mais completa.
Sentou-se no sofá de couro em frente á pequena TV.
Carlo apareceu pela porta da cozinha:
– E aí, descobriu? Podemos ficar com eles?
– Não... Desligaram o interfone na minha cara! – disse, em tom de indignação.
– Nossa! Aí tem coisa! Serão limões mágicos? – ele riu debochadamente.
Almôndega pulou no sofá e deitou-se no colo de Maria, que lhe deu um belo cafuné.
– Sei que não são doidos de pedra: O marido sai todas as manhãs para trabalhar. A esposa, bem, vejo ela às vezes, varrendo a calçada.
– Eles têm um pirralho?
– Não fale assim! – repreendeu ela – acho que sim...tenho visto um patinete ali na frente, às vezes..
– Talvez seja isso: o pirralho não sabe nada sobre a inflação e desperdiça comida... E nós tiramos proveito disso! Somos geniais!
– Essa foi a coisa, acredite, mais idiota que você já me disse... E, aliás, o que você sabe sobre inflação? Você só lê o jornal quando vai ao banheiro! E apenas as charges, ainda! – Ela cruzou os braços e franziu a testa.
– Isso é mentira! Talvez você não me veja lendo o jornal de manhã porque fica horas bisbilhotando os vizinhos enquanto varre a calçada! – disse ele, grosseiramente.
Almôndega resolveu sair do colo da dona, incomodado.
– Não bisbilhoto, não! Apenas quero ter consciência de quem mora ao nosso lado!
– Ah, para de mentir!
– E você, pare de ser gordo!
Ele fez uma careta e olhou-a de cima a baixo.
– Você não é das mais magrinhas...
– Sei que não, mas quando subo na balança só aparecem dois dígitos!
Ele riu.
– Ninguém mandou você ser tão boa na cozinha! – ele disse, com um sorriso simples, tentando dissipar a briga.
– Ninguém mandou você ser tão bom de garfo! – Ela colocou a mão em frente à boca e tentou impedir uma risada.
– Olha só, Mariazinha... Não passe dos limites! – Ele sentou ao seu lado, no sofá de couro, e lhe deu um beijo no rosto.
– Brigamos por limões e os vizinhos que são malucos, é? – disse ela, baixinho.
– Todos somos! – Ele ri.
O cenário muda: O autor passa pelo portão azul da família e entra na casa dos vizinhos misteriosos.
O cômodo é a cozinha: Uma bela de uma cozinha, aliás, com belos balcões de madeira-escura, belos utensílios e um lustroso fogão.
Uma mulher de meia idade, magrela, coloca o copo na parede em direção ao vizinho gordo e italiano.
– Acho que já pararam de discutir... - ela se dirige ao marido, que havia sentado-se à mesa de café.
– Acho que você devia parar de se importar...
– Claro que não! Roubaram meus limões...
– Ninguém mandou você jogá-los lá fora...
– Eu estava checando se eles estavam nos bisbilhotando – ela desistiu de ouvir a conversa dos vizinhos e se sentou á mesa – A mulher sempre nos olha enquanto varre a calçada...
– Bom, estão. O que vai fazer com essa informação? Atirar mais frutas?
– Não. Vou esconder seu patinete... Talvez descubram que é seu.