Diário da Pestinha: Aretha, passarinhos e frutas

ARETHA: PASSARINHOS E FRUTAS
Miguel Carqueija e Regina Madeira


Naquela tarde eu retornava para casa, vinda da Praça João XXIII (em Miguel Pereira, onde morava), quando vi o garoto com o estilingue, jogando pedras nas árvores, tentando acertar algum passarinho. Ele estava sozinho e eu não precisei de muita coragem para abordá-lo. Tem coisas que me fazem sair do sério.
— Você, para com isso! Deixa os passarinhos em paz! Eles não te fizeram mal nenhum!
— Não enche, sua babaca!
Ele podia ser um garoto mas eu me visto como garoto (afinal sou uma pestinha) e não me assusto com cara feia: taquei-lhe um bofetão na cara e tomei-lhe o bodoque. Sou uma garota muito alta e mesmo que ele fosse um pouco mais velho eu igualava a sua altura. Ele não esperava minha reação e, assustado, ainda gritou:
— Me devolve o estilingue!
— Como você mesmo diz, não enche!
— Eu comprei o estilingue! Se quer ficar com ele vai ter que pagar!
— Tudo bem, eu pago o estilingue! Quantos tapas você quer por ele?
No fim ele foi camarada, deixou de graça mesmo e foi embora, me xingando... e eu me senti triste. Sabia que não se pode ganhar sempre. Com certeza aquele monstrinho logo arranjaria outro bodoque e continuaria a matar as avezinhas, contanto que eu não estivesse por perto. Teria sido melhor se eu o convencesse. Mas com aquela agressividade com que ele me recebeu não seria fácil tarefa.
Eu não o conhecia. Por mim, estilingues não existiriam. Guardei aquele na mochila, com pena de não ter força para quebrá-lo. Bem, isso o papai resolveria, provavelmente depois de me dar uma bronca. Os adultos acham que meninas não devem brigar, mesmo quando elas brigam melhor que os meninos.
Mas eu tinha pressa em chegar no meu prédio e no apartamento 506, pois pedira à Dona Rosilda que me esperasse um pouco. Ela na verdade gostava de sair à rua, mas andava cansada e fraca. Nos últimos dias eu conseguira que mamãe e papai e recebessem numa visitinha por mim organizada. Tendo quebrado o gelo que ela mesma impunha na sua vida, agora se tornara amiga de meus pais e irmãos.
Quando toquei a campainha, sabia que não poderia demorar. Mamãe cobrava muito o dever de casa, sem tanta necessidade, pois as minhas notas eram boas. Entrei, beijei a D.Rosilda e fui para o sofá.
Abri a mochila, com cuidado para que ela não visse a atiradeira (o que iria pensar de mim?) e puxei as bananas, maçãs e uvas.
— Só um anjo faria isso por mim — disse ela. — Ainda não entendo como você pode ser tão boa.
Sorri, meio encabulada. Eu, que até chamavam de diabinha... mas o que havia de extraordinário no meu gesto? Ela mesma pagara as frutas, e eu passei-lhe o troco. O que realmente acontecia é que os filhos faziam umas compras para ela, compravam a comida, mas esqueciam de trazer frutas, coisa que ela precisava muito. Aliás, o filho que ia visitá-la com mais frequência o fazia por força da obrigação, já que não aprendeu a amar a mãe (coisa que eu descobri com o tempo). Assim, naquele dia eu senti que ela não tinha nada de melhor para lanchar e me ofereci para ir no horti e trazer alguma coisa. Graças a isso, salvara a vida de passarinhos, embora ela não precisasse saber...
D.Rosilda poderia ser mais ativa, afinal ela ainda andava bem na rua. Mas se não havia comida em casa ela não tinha expediente para sair e comer no restaurante. Assim, acabava passando fome, o que é incrível de constatar em pessoas que não são pobres. O pior é que tais pessoas são muito arraigadas em seus hábitos. Comecei a achar que era preciso mudar a atitude dos parentes. Meus pais ficariam horrorizados se pudessem entrar em meus pensamentos e nas minhas tramas. Mas pestinhas são capazes de coisas incríveis...





NOTA: o conto "Aretha", início do diário da pestinha, foi publicado em 18/9/2015. 
(imagem pixbay)