AMIZADE
 
Por Claudio Menezes
 
─ Rapaz, faz muito tempo.
─ Muito, mesmo, quase trinta anos.
─ Mais, trinta e cinco. Foi em 1975, um grande ano.
─ João, Roberto, Denílson, uma defesa respeitável. Hoje todos em cidades diferentes...
─ Eu fiquei por aqui mesmo. Nunca sai de casa. E o Denílson também não. Só você foi embora. Eu até casei com a Vânia, filha do Seu Carlos, aquele PM que pegava no pé e não deixava a gente em paz. ─ Lembra deles?
─ Se lembro. A gente não podia fazer barulho, rádio alto nem pensar; namorar no muro da escola impossível, e estamos falando desse século...
─ Não, na verdade, foi mesmo no século passado.
─ Isso mesmo, século passado... Mas o Denílson ainda mora por aqui?
─ Mora na mesma casa no final da rua.
Vou abrir um parêntesis para apresentar o Denílson; Pense num amigo daqueles 1000%, sempre presente e sempre prestativo com todos. Todas as senhoras da rua gostavam dele. Ajudava a todas carregando as compras e sempre solícito para tudo; levava recados. Naquele tempo nem todos tinham telefone e eram as crianças que faziam as comunicações, correndo de uma casa para outra. Como era grande e forte, protegia os amigos na Escola. E além de tudo era o primeiro aluno da turma. Os professores o apontavam como exemplo e era mesmo um bom aluno. Nos bailes, já na adolescência, fazia sucesso com as meninas. E como era respeitador, as mães pediam para ele tomar conta das filhas. E ele tomava mesmo, não deixando que nenhum menino mais abusado viesse tomar liberdades indevidas. Quando os amigos reclamavam da postura, ele dizia: ”tenho irmã também, seus tarados!”. “Falou tá falado, não tem discussão”, era a letra de uma música da época. ”Respeito é bom e eu gosto” era uma frase que a gente de fato levava a sério. O Denílson realmente era alguém cotado para ser um bom pai, bom marido e fadado ao sucesso... Mas fechemos o parêntesis aqui.
─ No final da rua, o Denílson mora? Então vamos lá.  Vamos reunir a nossa famosa defesa ...
O Mário fechou a cara.
─ Não, não vale a pena, ele não vai gostar.
─ Como não vale a pena?
 E aí começou a contar a história desse amigo nosso.
─ Você já deve conhecer alguém com quem tudo deu errado. Tudo mesmo. Alguém que você apostava que ia ter sucesso na vida e não deu em nada. É, mais ou menos, o que aconteceu com ele.
─ Me conte isso.
─ A Lúcia, irmã dele, se casou com um traficante. Ninguém sabia disso. A gente pensava que o cara era funcionário público. Uma noite a polícia chegou e entrou na casa deles sem avisar. Foi uma desgraça. Matou os dois na cama do casal. A filha de três anos estava no quarto com eles. Por pouco também não morreu. Infelizmente um dos tiros pegou na menina. Ela perdeu a fala e os movimentos. Com a morte do irmão e da cunhada ele e os avós tiveram que criar a criança. Você sabe como são essas coisas. As pessoas, os amigos, todos se afastaram deles...
─ Soube que a dona Hercília, a mãe dele, tinha morrido..  Ainda me lembro do toddy que ela fazia para nós, depois dos jogos, para comemorarmos as vitórias ─ comentei.
─ Ele teve que desistir da faculdade para cuidar da sobrinha. Começou a trabalhar em uma padaria e até hoje está lá. Parou no tempo não foi para a frente.
 
Meu amigo Mário falava como se um acontecimento desses fosse suficiente para justificar o fato de as pessoas se afastarem das outras, como se tais fatalidades as transformassem sempre para pior, mesmo não sendo culpa delas.
Levantamos para ir almoçar. Fomos andando pelas ruas da nossa infância e juventude, mas quando chegamos no restaurante, eu parei na porta e me afastei um pouco, como se para atender um telefonema. Quando voltei me despedi dele dizendo que eu estava sendo chamado para uma urgência.
─ Vida de médico─ eu disse. ─ Você sabe como é.
Na verdade, eu queria mesmo é ir até a casa do Denílson.
Eu me lembrava bem do caminho. Mas ao chegar lá realmente me espantei. Estava tudo igual. Eram as mesmas janelas de madeira, o mesmo jardim de pedras brancas. Um sentimento de tristeza tomou conta de mim. Realmente eu não gostei de ver o meu amigo naquela situação de quase pobreza, e imaginei que ele também não gostaria de se mostrar assim. Mas eu já estava ali, e agora não dava para recuar. A saudade era maior do que o meu constrangimento. Toquei a campainha e ele abriu a porta. Imediatamente surgiu no rosto dele um grande sorriso de prazer.
─ Meu amigo João! (Ele me reconheceu imediatamente, depois de quarenta anos!). ─ Que satisfação você por aqui. Entra, entra, você já conhece o caminho.
O Denílson havia mudado muito.  Não era mais aquele caboclo forte como antes.  Parecia até que havia diminuído de tamanho. Demorei um pouco para reconhecer nele aquele outro, o amigo dos velhos tempos.
─  Que bom que você está aqui ─ disse ele. ─ Pensei que tivesse esquecido os amigos.
─ Não, não. Claro que não, respondi rápido. Ele olhou pra mim e perguntou diretamente:
─ Já esteve com o Mário e ele já lhe contou como tudo na minha vida deu errado?  Ele adora contar essa história.
─ Já estive com ele sim. Estranhei, vocês morando tão perto, e agora quase não se veem. A amizade acabou?
─ Na verdade ─ respondeu Denílson ─  ele se afastou de mim depois do problema com o meu cunhado. Até o meu pai foi preso naquela noite. E se não fosse o “Seu” Carlos, sogro do Mário, que é policial, talvez não tivesse sobrado ninguém para contar a história. Aquilo acabou com as amizades. Ninguém quis falar mais com meu pai e com minha mãe. Nem comigo. Acho até que eles morreram mais rápido por causa disso.
Era uma coisa triste. Eu não sabia o que dizer. A gente nunca sabe o que dizer numa hora dessas, a não ser as velhas frases chavão.
─  Que é  isso, meu amigo. ─ Eles estão melhores que nós. Eles merecem estar melhores que nós. Eram pessoas boas, como você. 
Ele então abriu um sorriso.
Ah! vamos tomar um toddy como aquele que a dona Hercília  nos fazia nos bons tempos. (Que bom que ele também se lembrava disso).
Fomos á cozinha. Tudo igual. A mesma mesa verde de fórmica, com suas cadeiras da mesma cor, de anos atrás.  Tudo tão limpo como antes. Ladrilhos branquíssimos nas paredes e o chão de uma cor quase azul-escuro.
Ficamos conversando horas e horas. E á medida que conversávamos, fui recuperando a visão que eu havia conservado do meu velho amigo. De repente ele era a mesma pessoa de antes: um gigante, de atos limpos e bom caráter. Uma alma boa, que cuidou da irmã deficiente por todos esses anos sem nunca pensar em si mesmo. Até que um dia ela se foi e ele ficou sozinho. Tinha passado a vida cuidando de seus entes queridos, e de repente viu que estava sozinho e não tinha mais tempo para mudar a situação. Ele foi um homem que não desistiu dos sonhos. Apenas não os teve, porque decidiu que a família era seu mundo, a sua missão na vida. Apesar de tudo, parecia feliz.
Pensando em tudo isso, rememorei a nossa velha turminha. Sugeri um brinde. Olhei para os lados e tive a sensação que todos estavam ali presentes. O sentimento de presença dos pais dele, da sobrinha e dos amigos, estava bem forte ali. Pensei em quanto eles deveriam estar felizes vendo seu querido filho e amigo, sorrindo novamente.
Era quase noite, mas o ambiente estava iluminado como se ainda fosse dia. Era uma luz que vinha da aurora dos tempos, acesa pela memória de uma grande amizade, que só de vez em quando a gente nota.
─ Á vida ─ disse eu, levantando a caneca de toddy.
─ A vida não, à amizade ─ respondeu ele, com os olhos marejados de saudade.
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Cláudio Meneses, é médico, com especialidade em endocrinologia e pós graduação em dietética. Nasceu no Rio de Janeiro, é casado com Gilce Paixão, também médica. Mora em Mogi das Cruzes desce 1987, onde exerce sua profissão. A música, a literatura e a filatelia são seus hobbies favoritos.
E-mail: doutormogi@hotmail.com