ARETHA

ARETHA
(Miguel Carqueija)



"O espírito do homem suporta a doença, mas quem erguerá um espírito abatido?"
(Provérbios 18,14)



Às vezes, quando eu passava em frente ao 506, parecia-me escutar gemidos abafados vindos daquele apartamento. Cheguei a falar disso com mamãe, mas ela minimizou o assunto, pois nunca tinha escutado nada. Quem morava lá era uma senhora idosa que mal falava com a gente, a Dona Rosilda, e nada sabíamos a seu respeito. Eu achava triste uma pessoa morar sozinha. Mas mamãe, papai e os irmãos aparentemente tinham muito o que fazer para se preocuparem com isso.
Não era o meu caso, ou porque eu tivesse ouvidos mais aguçados — bem Vovó Isa dizia que eu era “um animalzinho” — ou porque tivesse consciência mais aguçada, ou as duas coisas juntas. Do alto dos meus nove anos eu achava que lá dentro do apartamento 506 havia qualquer coisa que não estava certa, e estava motivada a descobrir o que era.
Assim, fiquei antenada à espera de uma oportunidade; e embora o apartamento em questão ficasse depois dos elevadores, eu os ultrapassava e descia pelas escadas, quando estava sozinha, apenas para poder passar em frente, com os ouvidos atentos.
Mas nem sempre era possível ouvir qualquer coisa e demais, quando saía com a Lady, esta ia agitada e ansiosa por ganhar a rua, eu tinha que entrar logo no elevador.
Um dia porém aconteceu a chance. Foi num domingo pela manhã quando saí para levar Lady a passeio e escutei um diálogo. Uma voz de homem dizia:
— E não esqueça de trancar a porta, mamãe. Sempre é perigoso!
— Eu tranco, já vou trancar! Vai com Deus!
Curiosa, resolvi fingir que ia descer a escada; cruzei com um homem jovem e alto, de cabelo escuro, bem vestido, segurando uma pasta de couro; ele olhou espantado minha poodlezinha, que quis farejá-lo. O sujeito não fez uma cara lá muito boa e se dirigiu ao elevador que acabava de chegar. Prossegui e fui até a escada; para decepção de Lady, recuei com ela. Alcancei a porta do 506 e experimentei. Ainda estava aberta...
Lady, bem comportada como sempre, seguiu-me sem fazer perguntas apesar do seu olharzinho intrigado.
Quando entrei vi um interior mal iluminado, móveis velhos, trastes desarrumados e uma velha magra num canto, junto a uma antiquada máquina de costura (eu nunca tinha visto uma coisa daquelas!), só reconheci porque vira em algum filme de época.
— O que você quer aqui com esse cachorro? Saia já daqui!
Em vez disso eu me aproximei dela. Não tenho fama de pestinha à toa, e pestinhas não desistem facilmente...
— Já disse para ir embora, e leve esse vira-lata! Não quero ninguém aqui!
— Tenho certeza que a senhora quer. A senhora está sozinha.
— Estou com Deus! Não preciso de mais ninguém.
— Então por que não fechou a porta quando seu filho saiu?
— Eu... eu já ia fechar. Que você tem com isso?
Eu sentei no chão, na frente dela e a Lady fez o mesmo.
— Quem sabe Deus foi quem mandou eu vir falar com a senhora?
— Mas quem é você?
— Sou a Aretha, sua vizinha, moro no 501. A senhora já me viu!
— Vejo tanta molecada nesse edifício! Qualquer hora vou querer me mudar, os meus filhos é que ficam me empatando...
— Dona Rosilda, por que a senhora quer mudar? Esse edifício é tão bom...
— O que? Como é que você sabe o meu nome, se nunca fomos apresentadas?
— Mamãe me disse o seu nome. O nome dela é Célia, a senhora a conhece.
—Acho que já falei com ela. Mas nenhum vizinho quer saber de mim.
— Não mesmo? Ou é a senhora que não quer saber dos vizinhos? A vida é tão boa!
— Não fala besteira! A vida é horrível nesse mundo cheio de maldade! Ei, chame o seu cachorro!
A Lady fôra cheirar as pernas da velha, e abanava a cauda.
— É cachorra, Dona Rosilda. E se ela está abanando a cauda é porque a senhora é boa gente, a Lady nunca se engana; a senhora só é um pouco rabugenta.
— Por que deram esse nome a ela? — perguntou a Dona Rosilda, ensaiando uma tímida festa em minha cadela.
— Fui eu quem deu esse nome quando a ganhei. Eu tinha visto aquele filme do Walt Disney...
— “A dama e o vagabundo”? Você conhece? Mas como? Já faz tantos anos que passou nos cinemas...
— Eu vi em devedê, Dona Rosilda.
— Ah, essas novas invenções. Meus filhos bem que podiam me comprar um, mas acho que eu não saberia usar.
— Quer dizer que a senhora gosta desse desenho... e gosta de bicho...
— Sempre gostei de bicho, os meus filhos não querem que eu tenha nenhum...
— Por que é que a senhora mora sozinha?
— Isso é uma longa história, minha filha... mas por que é que você entrou aqui, afinal?
— Achei que a senhora se sentia só... a senhora às vezes chora sozinha, não é?
— E você chegou a escutar? É tão baixinho que eu choro!
— Mamãe fala que eu tenho ouvido de raposa — e sorri quando falei isso.
— Bem, falando nisso... sua mãe não vai ficar preocupada? Ela não sabe que você está aqui...
— Eu vou na rua com a Lady, foi bom lembrar.
Eu me levantei:
— Posso vir sempre aqui visitar a senhora?
— Bem, sim... contanto que não traga mais ninguém. As crianças de hoje costumam ser muito abusadas. Você é diferente...
Eu cheguei até ela, beijei o seu rosto:
— É melhor a senhora fechar a porta como o seu filho disse.
— Sim, sim, vou lá...
Ao nos despedirmos na porta foi ela quem me beijou e me agradeceu:
— Não pude te oferecer nada, mas venha lanchar comigo qualquer hora. Mas fale com seus pais, ou eles podem se zangar...
Fui para a escada (que é que tem descer cinco andares pela escada? Se a Lady cansa eu levo no colo) e ela ainda disse “Vão com Deus”. Eu desci, sentia lágrimas escorrendo. Quão solitária ela seria, mesmo tendo filhos? Por que não morava com nenhum deles? E se ficasse doente e não pudesse chamá-los?
Prometi a mim mesma que seria amiga daquela velhinha.



NOTA: Aretha apareceu pela primeira vez no poema "A Pestinha", publicado em 7/8/2015.




ARETHA

A mor e compaixão
R esolve então
E nfrentar a situação
T ransformar em ação,
H á sempre um bom motivo
A mar o próximo sendo prestativo 

(interação de Angelica Gouvea)



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