ACORDO



- Pois não, senhor?

- Café coado, por favor.

- Já trago. Mais alguma coisa?

- Por enquanto, não. Estou aguardando uma pessoa.

O garçom se afasta para providenciar o pedido. Enquanto isto, Américo  puxa de sua valise um jornal que comprou na banca, ao sair do hotel. Quer apenas se distrair, enquanto aguarda o café e o contato.

Mas a publicação não consegue sequer atraí-lo. Ao ler o primeiro parágrafo de uma das notícias políticas, percebe que é só mais um pasquim chulo, tentando tomar partido no grande conflito fisio-ideológico que envolveu a maior parte das discussões do país nos últimos anos.

- Eu não preciso ler jornais, mentir sozinho eu sou capaz. – Murmura um trecho da canção de Raul Seixas pra si mesmo, enquanto folheia avidamente em busca da parte que fala de artes e entretenimento, na esperança de nela encontrar algo que dê pra ler sem sentir a inteligência insultada.

Localiza as poucas páginas com as quais ainda não cortou relações. A leitura é até  interessante, mas não lhe desperta nenhuma emoção. Afinal, não irá aproveitar nada da programação local. Não terá tempo. Sua missão é bem breve desta vez. E por mais que ele ache encantador passar algum tempo pelos cafés e escritórios de Brasília, seu profissionalismo não lhe permite desvios de rota ou mudanças de calendário.

- Seu pedido, senhor.

O atendente o interrompe com um fato bem concreto. Concreto e aromático.  Américo repousa o jornal numa das cadeiras e passa a se ocupar com a milenar bebida.

Despeja a pequena jarra de água quente sobre o pó do minúsculo coador, enquanto direciona seu nariz para o ponto por onde sobem os vapores provocados pelo ritual. Eis aí um prazer que os anos não modificaram. Nem o endurecimento de seu coração.

De sua mesa, pela vitrine, consegue ver o movimento da Primeira Avenida. O Sudoeste sabe ter seu charme, principalmente a partir de uma cafeteria.

Américo se permite olhar para essas coisas com algum encantamento como se, em algum labirinto dentro de si, tivesse conseguido ocultar a criança feliz que acredita ter sido um dia, para que as escolhas que fez na vida não fossem capazes de dar cabo dela. Um menino que sempre conseguira dar a si mesmo motivos para sorrir e acreditar no melhor lado do mundo.

Sua capacidade de se maravilhar com o simples, de ver magia nos detalhes do que para muitos seria comum, garantiu-lhe crescer cheio de otimismo e imaginação. E o hábito desenvolvido de sorrir deu a ele a facilidade incomum de encantar e ser convincente, sem fazer muita força. Qualidade que fez muitos sugerirem a ele várias carreiras, nas pausas entre a admiração e a inveja que sentiam.

Vendedor. Orador. Líder. Sacerdote. Mestre. Diplomata. Negociador. Conselheiro. Foram muitas as palavras pronunciadas por todos, ao longo dos anos, sempre ao final da pergunta “Por que você não se torna um....?”.

Mas a dificuldade em se decidir acabou por arrastá-lo, de um episódio a outro, para o muito bem remunerado cargo que hoje exerce. Quem tiver acesso aos seus contratos de trabalho, verá marcada a atribuição de Relações Públicas. Mas Américo sabe muito bem como o chamam por onde passa: Lobista.

- É só uma palavra.

A voz de seu primo, explicando-lhe o termo pela primeira vez, ecoa na sua cabeça.

Henrique foi seu primeiro contato com este mundo. Recém-eleito vereador por uma legenda minoritária na cidade catarinense de Palhoça, percebeu  a necessidade de convencer, antes das sessões da câmara, alguns de seus pares no parlamento sobre a importância de seus projetos. Mas não se sentiu tão confiante para a abordagem pessoal como o fora no púlpito. Certamente o primo sorridente seria de muita valia. Ele e sua lábia. E assim surgiu o primeiro convite.

Querendo ajudar o parente em seu primeiro desafio, e acreditando na importância do projeto, Américo aceitou. Após dois dias de conversas, o bom resultado: proposta aprovada na Câmara Municipal.

Comemorando com cachorro-quente e guaraná na Praça Sete, ao final da sessão, a frase apareceu:

- Você é um lobista brilhante!

Aquele dia mexeu com Américo. Tinha abraçado uma causa nobre e a ajudado a perseverar. E tinha sentido uma energia inexplicável dentro de si.

Daquele trabalho, surgiram outros. Não apenas para seu primo. E nem sempre tão relevantes.

Mas a adrenalina provocada, a vaidade afagada e o bolso contemplado foram dando a tudo certo prazer mágico. Os anos trataram do resto.

Américo, por fim, tornou-se um lobista de fato. E renomado. Daqueles que caberia num romance de intrigas, com repetidas cenas se passando por tabacarias enfumaçadas com cheiros de charutos, carpetes envelhecidos e corredores de hotel, entre conversas cruzadas, muitos ternos e olhares soturnos.

Muitas vezes, os mundos frequentados contaram com o quebra-gelo e os contatos de seu primo, que avançara também na carreira parlamentar. Mas seu nome, por si só, já abria uma quantidade  e uma variedade impressionantes de portas.


Suas peripécias foram se diversificando. Em cozinhas simples, onde partilhou pinhão com seus contatos, enquanto os convencia a abrir uma associação ou a boicotá-la. E até em salões suntuosos de convenções internacionais, para angariar investidores estrangeiros ou fechar grandes compras.

Ao longo do tempo, dos convites e dos elogios, as causas foram se tornando missões, para depois - com simplicidade e frieza, serem meros contratos.

Um bom profissional honra sempre seus contratos. Sem outros juízos.

Américo convence regularmente a si mesmo que seus êxitos, no cumprimento do que foi contratado, são sua motivação. Mas evita se perguntar demais sobre isto.

Uma conversa descuidada entre quatro senhores numa mesa ao fundo traz sua atenção de volta para o presente. Sutil, ele os observa enquanto sorve o café. Pelo modo como se vestem e falam, um deles é militar reformado; e dois outros já atuaram nos gabinetes do poder, provavelmente em versões antigas da Casa Civil. O quarto senhor parece um mistério. Logo, deve ser de uma transnacional.

Os quatro parecem avaliar e discutir os cenários de crise governamental do momento; e as possibilidades de alguém tirar vantagem disto. Se por curiosidade, força do hábito ou envolvimento, não fica claro.

Um ímpeto súbito de tentar entender a posição e o interesse dos veteranos aparece. Mas ele sabe que é um erro. Pois isso pode turvar sua objetividade, e demandá-lo a escolher um lado também.

Não há espaço para escolhas. Há um contrato. As únicas crenças e opções que Américo pode se permitir são aquelas que cabem nas cláusulas. Assim, ele age de forma mais segura e senta um pouco mais distante do quarteto.

Seu contato está demorando a chegar. O lobista aperta a campainha que fica na borda da mesa e o garçom aparece.

- Mais um coado, senhor?

- Sim, obrigado.

Enquanto o rapaz se afasta, Américo sente um movimento diferente na entrada do Café. Virando-se, vê um homem de terno com a expressão de quem procura alguém. O ar juvenil certamente deve enganar sobre sua idade física, mas não deixa dúvidas quanto ao fato de que é muito novo. Se coubesse descrever um perfil, arriscaria acrescentar que é imaturo e recém-casado. Talvez, até idealista.

Sua intuição grita com todas as forças alguma coisa inquietante. Sem dúvida, o novo freguês do café é o contato que ele espera. Mas não é o tipo que ele gostaria que fosse.

- Muito verde. - resmunga.

Mas será só isso que o inquieta no recém-chegado?

O jovem engravatado o avista e caminha em direção à sua mesa. Ao se aproximar, usa a fala mais clichê que a situação permite:

- Sr. Américo?

O lobista se levanta e, esticando a mão, decide entrar no protocolo  da previsibilidade:

- E você é...?

- Daniel.

- O Deputado?

Um sorriso e um discreto aceno da cabeça respondem positivamente.

- Por favor, sente-se. Deseja um café?

Outro aceno de cabeça. A campainha da mesa faz o garçom se aproximar e trazer mais um cardápio.

- Eu gostaria de um carioquinha e um tostado.

- Pois não. E o senhor?  Mais um coado?

- Sim, por favor. E um Roll de Canela.

Os olhos agitados de Daniel revelam desconforto. O que sugere a Américo que, mesmo verde, o jovem não é bobo.

- Então, Sr. Daniel... Primeira Investidura?

- Como?

- Quis dizer, é seu primeiro mandato em cargo político?

- Por que a pergunta? – Reage Daniel, mais desconfortável.

- Relaxe. É só um jeito de puxar conversa. Mas se não deseja falar de si mesmo, não há a menor necessidade. – Responde Américo, com uma fleuma cinematográfica construída para tais momentos.

- Não tenho nada a esconder. É meu primeiro mandato, sim. Mas não é o começo de minha vida política. Sempre estive envolvido em grandes causas, desde o segundo grau. E disputei eleição em algumas entidades estudantis e ambientais. Com excelentes votações.

Da reação inicial lacônica a essa resposta quase verborrágica, é um salto muito grande para tão pouco tempo. Américo faz sua segunda dedução: o jovem é mesmo idealista; mas também é inseguro quanto à sua aceitação. E ensaia ser muito vaidoso. Então, este pode ser um ponto a explorar.

Pelos caminhos que trilhou, o lobista foi colecionando frases sonoras que possuíam grandes ensinamentos para seu oficio. A que mais lhe impressiona, seja pelo modo como soa, seja pela frequência com que se mostra aplicável, veio de um professor piauiense de seu ensino médio:

- Há três sons capazes de alterar a percepção da realidade e o juízo, afetando  as decisões humanas: o tilintar da moeda; o sussurro da pessoa desejada; e o alarido das palmas. 

Américo observou, ao longo do tempo, que os interlocutores com os quais precisou negociar conseguiam ter boa resistência a um  destes “sons”.  Às vezes, a dois. Mas jamais aos três.

Arma a tese de que Daniel, na atual fase de sua vida, tem baixa resistência ao terceiro som: o “alarido das palmas”. E avança:

- Então, quando decide ingressar nessa “outra vida política”, já  começa pela Câmara Federal? Brilhante! Você deve ter uma história respeitável e muitos admiradores para conseguir um feito desses. Afinal, é uma disputa difícil...

O brilho nos olhos de Daniel sugere que a aposta de Américo pode estar certa. Há uma enorme criatura vaidosa escondida naquele terno sóbrio. Confiante, o lobista completa a frase, arriscando uma segunda sondagem:

-  ...e cara.

Não há nenhuma mudança de tom no semblante de Daniel. Ao contrário, esboça um sorriso e começa a falar:

- Todos me disseram que isso seria um problema. Mas, pra minha surpresa, foram tantas pessoas a fazer, voluntariamente, campanha para mim, que a logística de divulgação ficou com um custo bem menor. O presidente  estadual do meu partido considerou isto um fenômeno só visto antes em livros. Acho que minha história de lutas sinceras, pelo meio ambiente e pela justiça social, foram minha melhor divulgação!

- Que matraca! – pensa Américo, enquanto ouve o discurso com um sorriso elegante, mas contido, para não passar entusiasmo demais ao interlocutor, tornando sua fala interminável.

Outra dedução lhe vem à mente: O juízo do eloquente deputado não parece mesmo suscetível ao “tilintar da moeda”.

O lobista sabe que, agora, é preciso incluir na conversa um elemento de insegurança, que deixe Daniel incerto do resultado do encontro. Caso contrário, como o bom vaidoso que parece ser, ouvirá cada vez menos os pensamentos que forem diferentes dos seus próprios, diminuindo a possibilidade da conversa resultar em acordo que traga conveniências.

- Bom, Sr. Deputado,  com essa capacidade tão surpreendente de angariar apoios e vencer, talvez tenham se equivocado ao me enviar. Afinal, não me parece que precise de ajuda para aprovar um projeto.

O café é servido, ao mesmo tempo em que Américo despeja sua refinada ironia.

- É só essa sua base de apoio pressionar os parlamentares que não se convencerem naturalmente com sua verve.

A cor no rosto de Daniel muda; e o brilho se restringe um bocado. O olhar é bem menos exultante, agora. Américo sorri por dentro, cumprimentando-se por ainda ser tão afiado no jogo. Mas também se recrimina, por brevíssimos segundos. O que não é normal.

- Quisera eu que fosse assim simples, Sr. Américo. Mas nem todos estão lá com a disposição de debater ideias, ou mesmo de revê-las só porque um novato conhece muito do assunto e tem bons argumentos. - Comenta o deputado, começando a se acabrunhar.

Com expressão compenetrada, contida e solidária, Américo segue sua atuação:

- Entendo. E sem a quantidade certa de votos, o excelente projeto sobre a revisão demarcatória das matas ciliares, que você e sua base desenvolveram, nunca chegará ao Senado.

Daniel demonstra alguma surpresa. Pelo visto, não imaginou que o seu interlocutor já tivesse estudado o assunto antes mesmo de sua conversa.

Américo finge não perceber a expressão e prossegue:
- Uma coisa é convencer quem está disposto a ser convencido. Outra, lidar com quem tem interesses diferentes e não os vê, nem de longe, presentes na discussão.

Com ar  desamparado, Daniel acena com a cabeça, concordando.

- Esse é o grande problema. Tudo o que eu tenho para argumentar em defesa do projeto não surtirá efeito algum. Acho que eles não dão a menor importância para o  meio ambiente. - Desabafa.

- Então precisamos descobrir para o que eles dão importância.

A frase do lobista empalidece o jovem parlamentar.

- Como assim? O que você está sugerindo? Eu não faço concessões ou negociatas! Não trabalho assim! - Exalta-se.

O profissional mantém a calma e a expressão quase teatral no rosto, evitando qualquer sinal que possa denunciar sua vontade de dar uma gargalhada. Na verdade, um lado seu quase quer admirar tamanha pureza. Quase.

- Sr. Daniel, receio que o senhor precise controlar mais sua disposição de apressar conclusões. Poderá lhe evitar dores de cabeça num futuro próximo, no convívio com seus pares. E, em especial, com os prefeitos que vierem pedir sua ajuda.

Toma um gole de café, enquanto mede a atenção do jovem. E prossegue:

- Pode ser uma pessoa muito inteligente, mas nem assim tem a garantia de já saber, de antemão, o que e como cada um de nós pensa. Em qualquer assunto.

A expressão de Daniel mostra seu desconforto com o que acaba de ouvir. Sobretudo pela dúvida que tais palavras plantaram em sua mente. E pela vontade de provar a seu interlocutor que é melhor do que isto. Melhor e mais maduro.

Américo lê muito bem esses sinais; e percebe ter trazido o deputado ao exato ponto em que queria. É a hora de apresentar o que seus outros clientes esperam que apresente. O terreno está pronto para o plantio.

Assim, esconde em algum canto da alma a repentina sensação de que se identifica com seu contato. Afinal, isto é inconveniente. E prossegue a estudada abordagem.

- Já lhe ocorreu, Sr. Daniel, que podem existir assuntos nobres que interessam a esses parlamentares e que são indiretamente atingidos por seu projeto? Já lhe ocorreu que o que pode estar faltando é que alguém os faça perceber isto?

Os olhos do jovem demonstram curiosidade. A testa franzida, algum ceticismo. E a mão coçando o queixo, reflexão: Teria ele deixado escapar alguma coisa?

- Explique melhor, por gentileza.

A frase parece confirmar que ele está “no ponto”. Humilde o suficiente para ouvir uma nova ideia, permitir um plantio. Mas com a vaidade louca para aparecer e tentar convencer ao profissional e a si mesmo que nada do que for apresentado é, de fato, novo; e que já fazia parte de suas considerações.

É a hora de Américo parecer um daqueles professores que dá a deixa, na prova oral, para o aluno brilhante. 

- Veja só: Seu projeto busca dar um critério nacional para o dimensionamento e a limitação dessas áreas, de maneira a proteger o meio ambiente, evitar erosão nas margens dos rios e diminuir o risco de interpretações  locais nessa decisão. Interpretações que passem muito longe de qualquer princípio lógico e científico que o tema requisite.

Daniel nem pisca. Está atento, receptivo e envaidecido pelo modo como seu trabalho é descrito. Ciente disto, o homem de “Relações Públicas” dá o melhor de sua entonação vocal e postura corporal,
para garantir pleno domínio do momento.

- A divergência principal sempre esteve aí: ou cada um decide a partir de suas peculiaridades locais qual é o tamanho da área; ou todos devem seguir uma regra rígida e única nacional. Sempre que um lado é escolhido, sobram ainda muitos insatisfeitos, não é mesmo?

Como esperado, Daniel não resiste e fala, em tom elevado:

- É um falso dilema! A União não precisa impor uma régua única; e isso não quer dizer que os estados e municípios possam fazer o que bem entenderem sem nenhum compromisso científico! É isso que o meu projeto defende!

O lobista cumprimenta a si mesmo no mais ruidoso silêncio que consegue. E de novo, sente um ligeiro desconforto: Sua vaidade é tão grande quanto a do parlamentar? 

Afasta o pensamento perigoso e prossegue:

- Verdade.  Mas quantos estão convencidos disto? Seu projeto não deixou claro se a agricultura familiar e a pesca artesanal serão protegidas o suficiente, mesmo tendo que se submeter a um padrão mínimo de regras. Pense em quantas famílias dependem hoje destas atividades.

- Mas eu nem propus mexer nas regras atuais que os amparam. Há o sistema de cadastro para que essas famílias tenham suas peculiaridades preservadas...

Percebendo que o ponto da conversa é oportuno, o lobista o interrompe e joga na mesa vários argumentos de uma só vez, de propósito:

- E por que não deixa isto claro no seu projeto? Afinal, se está afetando a liberdade anterior de definição de margem mínima, eles podem estar inseguros quanto ao que continuará valendo ou não. Junte-se a isto a faixa de pessoas que ficou fora do critério do cadastro nacional, as quais já vinham manifestando insatisfação. Você certamente deve estar lidando com um número enorme de parlamentares que nem consegue ler profundamente a sua proposta. Entre outros motivos,  por estarem muito ocupados com petições e protestos de suas bases eleitorais sobre as dificuldades em manter as atividades econômicas dentro dessa polêmica.

- Que faixa de pessoas?

Esta pergunta não fazia parte dos planos. Américo recrimina a si mesmo. Sua autoconfiança pode ter comprometido a abordagem. Ou teria sido alguma empatia? Não é hora de pensar nisso. O controle precisa ser retomado.

 - É simples. Não houve revisão do valor de renda nacional máxima que este grupamento pode ter para fazer parte do cadastro. Então temos parte dessa população sendo vista como se fosse dos segmentos de produtores.

Daniel olha-o fixo e pensativo. A tentativa de incluir o tema da mudança de classificação da faixa de pessoas com direitos e limites flexibilizados não passou despercebida. É preciso mudar o foco. Com urgência.

- O que eu estou tentando dizer é que, se um representante do povo não está convencido dos problemas ambientais e nem acredita que poderá ser alvo da simpatia e do voto dos ambientalistas, isso não quer dizer que não lhe preocupem soluções de inclusão na economia para inúmeras famílias.

Um silêncio atento deixa ambos paralisados por breves momentos. O profissional conclui, enquanto corta uma fatia do Roll de Canela:

- Sobretudo em se tratando de famílias que o considerem seu representante. E que votem nele.

A expressão de aborrecimento toma o rosto do jovem ambientalista. Américo para de falar, maquia-se de sereno e decide observá-lo. 

- Não gosto do modo como se refere à política. Faz todos parecerem menos do que são. Mas entendo que sua linha de abordagem pode dar o resultado que precisamos. E é uma causa muito importante pra que eu ignore isto. - Fala o congressista, sem sorrir.

O lobista mantém uma expressão de interesse, enquanto respira com algum alívio. A discussão volta para o território que lhe dá conforto.

Mas então, por que não consegue sorrir por dentro, como antes?

Algo não está certo. Ele ainda não sabe bem o que. Apenas sabe que não está. Mas não é hora para inquietações. O contrato é seu foco. 

Américo Lobato volta a falar, na esperança de que este ato exorcize o fantasma que tenta importunar sua consciência.

- Mapeei seus pares em relação ao tema. Se obtivermos adesão de trinta dos deputados que são vistos como indiferentes ao assunto, acredito que sua proposta será aprovada. E já fiz uma redação para a emenda, com os termos que os farão perceber a vantagem em apoiar sua causa.

- Você já fez toda essa análise? - Surpreende-se o idealista.

- Levo meu trabalho a sério.

- Mas e se eu não fechar o acordo? Se eu não contratar o seu serviço? Terá estudado o assunto à toa.

Hora de mostrar a fleuma cinematográfica:

- Sr. Daniel, nenhum estudo ou conhecimento é desperdiçado neste ramo. Se o que aprendi sobre sua causa não for usado agora, certamente servirá para outros trabalhos.

O celular toca. Daniel o ignora, num claro sinal de que não interromperá a conversa para atendê-lo.  Mas Américo vê, na tela, a imagem de uma criança. Aquela sensação estranha lhe invade de novo.

- Não vai atender...?

Meio sem jeito, Daniel puxa o aparelho e recebe a chamada.

- Oi, filhão! Papai está numa reunião. Tá tudo bem?

Um filho. A julgar pela foto, o garoto deve ter uns nove anos.

- Calma. Mais um pouco e eu estou com vocês. Passe o telefone pra sua mãe.

Américo errou. O político não é recém-casado. No que mais terá se enganado?

- Oi, Daniella! Ele está ansioso, né? Só mais um pouco. Vocês sabem como este assunto é importante. Mas eu vou levá-lo ao circo, sim. Se não agora, depois. Podem ficar tranquilos. Também amo vocês. Tchau! - Fala o político, com ternura.

Circo. Ouvir essa palavra definitivamente não estava nos planos. A imagem de um pai levando um filho ao circo o faz viajar no tempo. No seu próprio tempo. O pequeno Américo ria muito e se sentia no paraíso quando ia a espetáculos com seu pai. O cheiro de um algodão doce azulado, grudento e muito açucarado, surge do nada e mexe com o fundo de seu peito.

- Sua família?

- Sim. Eu os trouxe para conhecer Brasília e decidir se querem viver aqui.

Família. Há tempos não vê a sua. Irmãos, claro. Os pais já se foram. E em sua vida itinerante nunca planejou incluir filhos ou cônjuge. Não pareceu lógico fazê-lo.

- Entendo. É uma decisão importante. Parece que seu filho é bem apegado a você.

- É, sim. Mas ele vai entender, caso eu demore. Ele também torce pela aprovação deste trabalho. - Comenta Daniel, com entusiasmo.

- Torce? – Américo está visivelmente surpreso.

- Sim. Ele acompanhou tudo. Conversamos muito sobre o meio-ambiente. Ele me fez ir até a sala dele, na escola, para discutir o projeto com seus amigos e com a professora.

- Ora. Você, então, é um herói real pra ele!

Com um amplo sorriso e os olhos úmidos, Daniel responde, olhando para um lugar que não está ali.

- É, acho que sou. E isto é grande balizador para mim, em meu trabalho. Sei que na política posso fazer inimigos. E até ser incompreendido por todos, de vez em quando. Faz parte. Mas não dá pra partir aquele coraçãozinho. Disso eu vou cuidar sempre.

Agora Américo sabe o que está errado em toda essa história. Aquele rapaz não é um simples idealista. É um homem íntegro. Alguém que está fazendo a coisa certa. Alguém que acredita de verdade num mundo melhor. Como outra pessoa que ele conheceu, há muitos anos.

Não importa o que faça, não conseguirá mais ver este parlamentar como um contrato. Ele é um homem. Um pai. O herói de um menino.

Américo enxerga a história por trás de sua missão. A objetividade se perde. Como prosseguir convencendo-o a mudar o texto da proposta sem ter convicção se isto distorcerá ou não o resultado da ação? A inclusão da outra população no cadastro do projeto favorece a justiça social? Ou cria brecha para que atividades econômicas predatórias possam invadir as matas ciliares?

Perguntas. Não dá pra ser efetivo neste trabalho fazendo muitas perguntas. Elas criam muitos cenários. O bom profissional só pode admitir um: aquele que lhe foi pedido.

O menino. O circo. A causa. Seu pai. Outro menino. Tudo isso parece falar mais alto em sua cabeça, agora. O contrato vira um sussurro tímido.

Seu espírito volta para aquele dia do cachorro-quente na Praça Sete, em Palhoça. E para a razão daquele dia ter sido tão especial.

- Sr. Américo? Está tudo bem?

A pergunta de Daniel o faz voltar à mesa da cafeteria. Ao presente concreto da conversação solicitada por seus outros contratantes. E ao fato de que, assim como o café coado, sua disposição esfriou.

- Está, sim. Apenas me dei conta de uma coisa.

- Do que?

A frase foi dita para ganhar tempo. Ele ainda não sabe bem como prosseguir. Não tem a próxima fala pronta. Uma emoção que há tempos não sente.

Mastiga seu Roll de Canela, sinalizando ao interlocutor que aguarde um pouco. E sorve o café frio, tão logo decide retomar a fala.

- Você não precisa de mim.

- Como? O que  está dizendo? - Surpreende-se o deputado.

- Esses parlamentares que ainda não se posicionaram podem ser convencidos pelos que acreditam nos seu projeto. Isso, nos casos em que não possam ser convencidos por você mesmo, com um pouco mais de elementos na argumentação.

- Mas... e quanto ao que você disse sobre alterar o texto?

- Talvez seja necessário. E talvez, não. Deixe-os demandarem isso primeiro. E se tal ocorrer, tente escrever palavras que os façam se perceber contemplados; mas que não mudem em quase nada a essência do que já foi  proposto. É um assunto delicado; cada mexida tem que ser muito avaliada antes. É fácil gerar brechas para a contradição e a decadência da ideia. É preciso um texto  bem amarrado para evitar isto. - Despeja o lobista, professoral.

Atônito, mas ao mesmo tempo energizado, Daniel pergunta:
- Por que está falando tudo isto agora?

- É uma pergunta para a qual não tenho uma resposta clara. Apenas percebi que você já tem o que precisa. E que deveria estar usando o seu dia para ir ao circo com seu filho.

Com expressão dividida entre a gratidão e o desafio, Daniel dá ainda uma estocada:

- Então o seu trabalho seria distorcer meu projeto?

A resposta vem de um Américo novamente dono da situação, que consegue ocultar muito bem as próprias dúvidas:

- Sou um lobista, Sr. Daniel. Não um golpista. Minha tarefa é conciliar os interesses, não sobrepujá-los.

Daniel parece desorientado com a frase de efeito.

- Não vi quais interesses eu estaria conciliando nesta ação. Pois o que você espera obter de meu trabalho já está ao alcance do seu. É a minha opinião profissional. - Complementa o homem das "Relações Públicas."

Um sorriso força uma pausa. Em seguida, Américo retoma a fala, diante de um ainda atônito jovem.

- Não se iluda. Você  precisará de profissionais do meu tipo em vários momentos. Acho, apenas, que este não é um deles.

Silêncio. Os dois homens se olham, pensativos. Em seguida, o deputado aperta a campainha da mesa antes que o lobista o faça. O garçom chega.

- Por favor, a conta.

Nada mais é dito, enquanto o cartão de Daniel cobre o valor da despesa.

O atendente agradece a ambos. E os dois cavalheiros se erguem, rumo à porta e ao estacionamento.

Uma despedida contida, com direito ao protocolar “foi um prazer”. E cada um segue seu caminho.

Américo sabe que seus outros clientes ficarão insatisfeitos. E que terá que melhorar suas defesas internas, se quiser continuar neste ramo.

Não dá pra escolher lados. E ele o fez. Não por convicções racionais. Mas por alguma outra coisa que escapou ao controle.

O lobista irá se ocupar de entender melhor tudo isto a partir de amanhã.
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Hoje ele só quer continuar sentindo esse agitado estranhamento que surgiu em seu interior. Essa adrenalina, essa quase alegria que começou no momento em que a situação saiu de seu controle, pela primeira vez.

Ele sabe que o jovem político não está imune a se perder no caminho. Mas também tem certeza de que não é no dia de hoje que aquele menino do celular começará a perder seu herói. E nem por causa de sua conduta.

Alguém dirá que foi uma derrota. Mas se foi, por que o  “Relações Públicas” está se sentindo tão bem?

A Primeira Avenida, agora, cheira a algodão doce e a cachorro-quente.

É quase como se ela soubesse que, no labirinto interior de seu visitante, onde tanta coisa ficou guardada, uma criança conhecida conseguiu sair um pouco para passear, provando que ainda está viva.

E que sente saudades de ir ao circo.