A Coisa no Micro-ondas

Iria trocar aqueles sapatos.

Melhor: iria queimá-los no micro-ondas ou no forno do fogão assim que chegasse em casa – e eliminaria todas as desculpas para não comprar um novo. Melhor ainda: iria dá-los para o primeiro mendigo que aparecesse na rua. Assim não corria o risco de passar mais uma semana com aqueles calos e andando que nem uma girafa de salto alto.

O mendigo que encontrou tinha como animal de estimação um filhote de garça. Ao receber os tênis surrados, o homem enrugou a testa e murmurou um agradecimento.

– Agora você tem onde dormir, Mestre Malaquias... – Disse ele, pondo um dos tênis ao lado do pássaro encolhido e trêmulo. – E onde cagar também. – Concluiu, e pôs o outro tênis do outro lado da ave.

Estendeu um dedo como se fosse protestar a atitude do mendigo. Então sentiu o alívio de estar descalço, o sangue voltando a circular nos seus pés, a textura da calçada, o vento soprando entre os dedos, e seguiu sorridente.

Os sapatos, a bem da verdade, era o menor dos problemas dele. Havia o problema do cansaço incomum também. Sempre que subia os dois lances de escadas que davam acesso ao seu apartamento, ficava tão cansado que acabava vendo TV e mexendo no celular por no mínimo duas horas, na exata posição em que caíra ao se jogar no sofá. Mas isso ele podia tirar de letra, claro. O que realmente o incomodava era a coisa que estava morando no seu micro-ondas.

Já devia fazer um mês que estava lá. Era uma coisa faminta, veloz e misteriosa. Era faminta porque sempre acabava comendo a maior parte, ou toda parte da comida que ele punha para esquentar. Veloz, porque nunca se deixava ver por ele, sempre escapando quando ele abria a porta do aparelho... por mais rápido que ele fosse ou tentasse ser ao fazê-lo. E era misteriosa porque... bem, aquilo não fazia o menor sentido.

A primeira vez que aconteceu foi com uma lasanha à bolonhesa que ele viera o caminho do supermercado até sua casa sonhando em comer. Sonhando com cada mordida que daria, com o sabor de cada camada fluindo em muitas cores por seu paladar. Sonhando que, daquela vez, daquela vez sim!, a lasanha, após os minutos de aquecimento necessários, ficaria IDÊNTICA à da embalagem e teria o sabor que ele imaginava que deveria ter ao vê-la na prateleira. Pusera a comida congelada para esquentar e fora ver o as novidades no Facebook (fotos dos passeios dos seus amigos no último fim de semana, ele tinha uma leve impressão de que eles só saiam para compartilhar as fotos com o mundo, mais tarde), no Twitter (aquela confusão de frases de sempre, que ele não entendia muito bem, mas ria de algumas piadas), no gmail (nada), no Hotmail (vírus, spam e convites para participar do LinkedIn) e no Instagram (que tinha mais fotos de cachorros que de gente). Logo ficou entediado e acabou atualizando tudo de novo para quem sabe encontrar alguma coisa realmente interessante. Fez isso de novo. E novamente. Quando deu por si estava rindo do décimo vídeo engraçado consecutivo, no YouTube, sem a menor ideia de como fora parar ali. Compartilhou no Facebook pelo menos dois dos vídeos, cada um acompanhado de um "kkkkkkkkk". Atualizou o Hotmail e viu uma nova mensagem, se animou até perceber que se tratava de outro convite para o LinkedIn. Animou-se novamente ao notar o número (1) na aba do Facebook, no navegador. Era um convite de um amigo para curtir uma página de mensagens motivacionais de bom dia e boa noite com imagens muito coloridas. Curtiu para não fazer feio com o amigo – um ex-colega de escola com quem só falava para desejar feliz aniversário na linha do tempo dele, ou para agradecer as felicitações que o amigo desejava no dia do seu aniversário, não usando, geralmente, mais que duas palavras para tal. Finalmente lembrou-se da lasanha. Lambeu os beiços e se dirigiu ao micro-ondas. Quando a retirou, levando uma bela queimadura, em sua ânsia, antes de lembrar de calçar a luva térmica, só havia metade da lasanha. Ficou tão chocado que pôs de volta a metade que não fora comida. Tomou banho e dormiu depois de beber apenas um copo d'água.

Assim que acordou na manhã seguinte se sentiu invadido por uma vontade lasciva de comer a lasanha que sobrara de ontem. Pôs para esquentar por um minuto e meio e foi por a água na cafeteira. Lembrou-se dos sapatos que ainda não tinha trocado e se sentiu um tanto desanimado para ir trabalhar naquele dia. Relembrou a lasanha e ficou um pouco mais animado. Abriu o micro-ondas e lá estava ela... a embalagem. Vazia. A coisa que ele passaria a chamar de O Monstro do Micro-ondas tinha comido a metade que deixara na noite anterior.

Gritou um palavrão e foi tomar café da manhã na padaria que não ficava na esquina. Ficava a dois quarteirões de distância. Foi bom caminhar para esfriar a cabeça. Quando chegou à padaria o monstro já não o incomodava tanto assim. Não chegou a comentá-lo com ninguém.

Mas já fazia meses que a coisa estava morando lá. E isso sim era um problema com P maiúsculo. Não achava o que ganhava suficiente nem para si mesmo, imagine para alimentar um duende invisível? Tinha até trocado de aparelho. Isso mesmo, comprara um novinho e mandara aquele para o quinto dos infernos. Isto, claro, não resolvera o problema.

Mas agora, enquanto caminhava descalço pelo centro da cidade, recebendo olhares indiscretos de pessoas que ele imaginava ser do tipo das que se sentem incomodadas com as alegrias alheias, nem isso parecia assim tão grave.

Sentia-se livre. Percebia agora como o pôr do sol deixava aquela cidade feia até com um aspecto apresentável. E as pessoas até que não eram de todo mal. E havia gente vendendo sovertes nas ruas, o que era realmente bom e, por Deus, há quanto tempo não tomava um daqueles? Um bom sorvete de rua na casquinha, daqueles que sempre derretiam e acabavam pingando e sujando sua roupa, era tudo o que ele precisava para coroar aquele belo momento.

Que delícia, pensou, vendo a máquina cuspir o sorvete dentro da casquinha naquela majestosa forma espiralada. Ah, que coisa mais perfeita. A humanidade é mesmo incrível, quase falou em voz alta. O ocorreu a dúvida do porquê nunca ter lido algum poema sobre sorvetes. Escreviam aos montes sobre amor, saudade, esperança... tudo bobagem... o que poderia ser mais doce e, portanto, mais digno de ser eternizado em versos simétricos do que um belo sorvete de chocolate e baunilha na casquinha?

Sentou-se num banco de praça e admirou a guloseima, enquanto a girava, por um longo período. Namorava a comida como um astrônomo contempla a beleza de uma galáxia. Deu umas lambidinhas na parte que havia derretido e finalmente resolveu dar a primeira mordida. Porém, decidiu dar uma última giradinha, antes de por um fim naquela obra de arte. Ao fazê-lo, levou um susto que o fez derrubar o inteiro sorvete no chão. Havia uma mordida, que ele não lembrava de ter dado, no lado oposto.

Aquilo desencadeou uma série de lembranças. Cada uma delas caindo após a outra, em efeito dominó. E cada uma das lembranças tornava mais irrefutáveis três profundas certezas.

A primeira: a lasanha daquele primeiro dia não tinha o gosto parecia ter na embalagem.

A segunda: ele estava gordo como uma porca prenha.

A terceira: o Monstro do Micro-ondas e ele eram a mesma coisa.

Apanhou a casquinha do chão, agora quase sem sorvete, derrubou seis formigas que já tinham subido nela, comeu o pedaço que não tocara o chão, e, após dar um leve assopro nele, mandou para dentro o outro pedaço também.

Caminhou em direção ao seu lar, assoviando uma antiga canção de sua infância, saudando a beleza da vida e a solução do enigma que tanto o incomodara nos últimos tempos.

A vida era estranha e bela.

Davyson F Santos
Enviado por Davyson F Santos em 11/09/2015
Reeditado em 12/09/2015
Código do texto: T5379071
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