Michael

E a lembrança da infância, assim tão fora de hora, veio bater à minha porta. Vejam só se isso é hora: eu aqui, insone, debaixo das cobertas, numa noite fria e chuvosa, tilintar das gotas que caem do céu, na janela do meu quarto, trazendo-me a recordação saudosa de um amigo já tão distante e dos momentos que passamos juntos, amigo de quem há tanto tempo não me recordava.

Posso até sentir o cheiro da sua casa, aquele sítio no qual passei tantas férias escolares. De dia, brincávamos ao redor da casa de estilo antigo, cheia de requinte e bronze e frieza, da qual, inocentes, não nos dávamos conta. Eu, travessa, dizia pro Michael que duvidava dele ser capaz de atravessar todo o terreno coberto de pedregulhos que cercava a gigante soleira no caminho da piscina. Ele, molecote - coitado - que queria impressionar, ia, tentava e logo voltava chorando, chamando pela mãe, com a sola dos pés queimadas pelo ardor do sol de interior e a pino, que ardia sobre o chão. A mãe então me chamava, dizia que eu era quase uma mocinha, que não devia fazer assim com os mais novos.

E assim o dia seguia até o céu se alaranjar, o cheiro úmido de pinheiro e eucalipto misturavam-se a medida que iam invadindo a sala revestida de tacões de madeira, a lareira acesa. A lenha queimando aquecia a água dos canos que saia dos chuveiros. Nossos pais nos mandavam para o banho, que tomávamos afoitos e depressa corríamos para lamber o prato do jantar e, então, poder descer para a adega fria e escura que ficava no andar debaixo da casa, partindo de uma escada circular no centro da sala de televisão. Ali dizíamos jogar cartas, mas o que fazíamos era experimentar de alguns galões de vinho e falar besteiras. Ninguém percebia. Depois, já levemente embriagados, saíamos novamente da casa, subíamos a ladeira que levava até o canil e nos deitávamos no chão (ai se fôssemos flagrados ao chão, depois do banho!), sobre os pedregulhos. E, lado a lado, de mãos dadas, passávamos horas, olhando a lua estonteantemente brilhante e imaginando como seríamos quando adultos, se seriámos ainda amigos, se teríamos filhos, se passaríamos ainda nossas férias no sítio e muitas outras coisas que o tempo lambeu das minhas lembranças. Anos depois, já adolescentes, as conversas eram outras, os cheiros também... Mas continuávamos nos deitando naquela ladeira de mãos dadas, falando besteiras ao luar.

O tempo foi passando e se incumbindo de nos distanciar, nossos interesses mudaram, aos poucos nossas férias juntos foram ficando mais esparsas e vez ou outra, quando aconteciam, estávamos mais ligados em quem lá não estava. Fomos crescendo, amadurecendo, vieram outros interesses, outras pessoas pelas quais nos apaixonamos. Depois nos casamos, tivemos filhos.

Alguns anos mais tarde, apesar do carinho que tínhamos um pelo outro, Michael se tornara alguém que eu só lembrava quando recebia notícias e que, devido à nossa distância geográfica, eram muito poucas. A última notícia que recebi dele, há uns 15 anos, me foi trazida pelo meu pai que, ainda nos dias de hoje, é amigo-irmão de seu pai de criação: - Filha, me disse ele com a voz embargada, seu amigo de infância hoje encontrou uma saída deste mundo... Foi lá pela estrada do sítio... Deu de cara num caminhão. Chorei como criança que deitava o corpo no pedregulho assistindo à lua brilhante, chorei... Mas meu amigo nunca mais eu vi: no velório, seu caixão era lacrado.

E hoje estou aqui, 02h05min da madrugada, com uma insônia daquelas e, sem saber por que, lembrei-me dele, do Michael. Menino negro, gordinho, coração grande, bochechas sardentas. Meu amigo Michael, de quem há tanto tempo eu não lembrava, me fazendo perceber o quanto me perdi de mim nestes anos todos que se passaram. Meu amigo Michael, que não está aqui pra segurar na minha mão, me fazer sentir como aquela criança e, entre besteiras e leves bebedeiras, me dizer como terminar isto aqui.

Meu amigo Michael...

Lost Vivi
Enviado por Lost Vivi em 11/09/2015
Reeditado em 03/01/2022
Código do texto: T5377975
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