Minha história sobre o tempo e outras coisas

Pela manhã, ela passou mal. Correm tanto as irmãs, que tampouco se falavam. Põe no carro, correm pro hospital, passam os dados da paciente para uma impaciente secretária. "É Unimed, quarto particular." - diz uma das irmãs, com uma agonia contida no olhar. Botam a paciente na maca, correm para a Unidade de Tratamento Intensivo. Agonia. A neta espera num canto da casa, mas seu coração e pensamento vagam por entre os corredores do Centro Médico de Campinas em busca de qualquer notícia. Luciana, a filha mais nova, é a encarregada do dia. Ela fica com a senhora à noite no hospital. Liga para uma neta que ficara horas sentada ao lado do telefone: "Ela está bem, está até conversando. Com sorte, amanhã recebe alta"- anuncia alegremente. Informara à neta que fora uma alta de diabetes - doença que a avó adqüirira em função da idade - e que receberia alta no dia seguinte caso não houvessem maiores complicações. A neta não dorme, tenta comer, mas só o que consegue fazer é esboçar uma tentativa de reza - se dizer atéia numa hora dessas é burrice. Inventa um monte de santo, ri do seu exagero. Chora.

Segunda-feira de uma manhã ruidosamente ensolarada, férias. Dia vinte e dois de julho do ano de 2009. A neta que não dormiu finge que acorda. Vê na mãe a mesma olheira escura de quem passara a noite orando para todo e qualquer santo do qual conseguisse recordar-se. O pão na chapa não desce no estômago vazio - talvez porque o coração não permitisse. Mãe e filha trocavam olhares sem precisar dizer palavra. A mãe quebra o silêncio: "Daqui a pouco a sua tia liga pra dizer que a vó recebeu alta". Como se obedecendo a um pedido desesperado, o telefone toca e a tia diz, num tom amargurado: "A vó voltou para a UTI. O médico disse que a estado dela é delicado." Lágrimas caem dos olhos da neta sem qualquer permissão e sem cessar. A mãe, que parecia carregar em si todo o peso do mundo, balbucia num tom rouco e baixinho: "Vamos ver a vó no hospital".

O hospital é do outro lado da cidade, e o trânsito não colabora. A mãe pega o cartão de estacionamento, pára o carro próximo ao pronto-atendimento e pede informação na recepção: "A UTI, como faço para chegar?" A moça explica as devidas direções, como quem explica o caminho da praia: "Passem pelo Hospital Dia, virem à direita, à esquerda, e entrem por uma porta de vidro verde."Seguindo tais orientações, mãe e filha chegam à recepção da UTI e pedem informação para a moça ao telefone: "Ivone Matta, qual quarto?" "Um por vez, cinco minutos de permanência"- diz a moça, apontando uma porta logo em frente. A neta entra primeiro. Ao avistar a vó, apóia-se na cadeira de visitas da sala da UTI. A vó encontrava-se, aparentemente, dormindo. Aparelhos, fios, medidores, quase não dava para ver o seu rosto. Que na verdade não era um rosto e sim um esboço de dor e sofrimento. O ritmo de sua respiração denuncia que seu estado não é estável. A neta não consegue conter as lágrimas. Seu coração nunca se fez tão presente quanto naquele momento, pois ele doía. A neta está fora de si e a enfermeira a retira do quarto. Ela sente uma vontade súbita de dar-lhe um pontapé. A vó era dela e não daquela vaca, ela deveria poder permanecer no quarto o quanto quisesse. A mãe assusta ao ver a reação da filha ao adentrar a recepção. A filha, que sempre fora o ombro, agora precisava desesperadamente de um. A mãe entra para a visita, e ao sair sua reação não é diferente. Lágrimas de pavor. "O horário de visitas está encerrado." - anuncia a enfermeira-vaca. "Agora abriremos para visitas novamente às 18 horas."

O caminho para casa praticamente não existe. É um carro, uma estrada, e duas pessoas mudas, perdidas no mesmo pensamento agoniado. Chegam em casa, ela parece vazia - e está. O cachorro vem lamber a neta como que numa tentativa de consolo. A neta senta-se na cama enquanto a mãe desaba no sofá. A menina olha fixamente para um ponto na parede, e seu pensamento vaga enquanto seu coração bate inutilmente no peito. 14h, 14h30, 15h30. A neta se levanta, seus pés e mãos adormecidos por ficarem tanto tempo na mesma posição. Ela pega o telefone, disca o número da tia que ficara no hospital aguardando por notícias. A tia atende e pede um segundo. A neta consegue ouvir a conversa: "Sra Luciana, nós sentimos muito, mas a Dona Ivone acaba de falecer."A tia não precisa dizer palavra. A neta larga o telefone e a consciência lhe pesa mais do que chumbo. Começa a andar de um lado para o outro numa tentativa desesperada de fugir da verdade. Não sabe como é capaz de ficar em pé. Precisa de um ombro, e precisa dar a notícia à mãe. A mulher aparece na cozinha e a filha decide ser maldosamente direta: "Mãe, a vó morreu." A mãe cai de joelhos, e a filha é, novamente, o ombro de que tanto precisava. O sol se põe, a lua encobre um céu ridiculamente estrelado. E a filha ainda é o ombro. O cachorro permanece embaixo da cama da vó, como se aguardando por alguém que nunca mais viria.

Autópsia, velório, parcelamento do caixão, anúncio da missa no jornal. Burocracia da morte. Todos esses procedimentos passaram batidos pela neta, que não tinha nem coração, nem consciência. Só sabia pensar no quanto deveria ser imatura, por sofrer daquele jeito por alguém que se foi. Gente morre todo dia. Sentia-se egoísta e pequenininha. Seu coração apertava tanto que chegava a doer fisicamente. "Era a hora dela, Deus quis assim." Estas eram as justificativas tolas dos familiares para uma morte tão repentina, às quais a menina ignorava para não responder.

Sete palmos. Terra fofinha, caixão bonitinho, maquiagem e roupa. Gente trazendo coroa de flor, terço, gente chorando, gente conversando do tempo. E a vó no caixão, alheia. A menina permaneceu quietinha olhando para o rosto morto da avó. Ficou observando em silêncio aquela que fora sua companheira de infância, de juventude, aquela que daria a vida para lhe ver feliz. Aquela que acompanhou sorrisos e choros sem distinção, aquela que a amou incondicionalmente.,Um palmo, dois palmos...sete palmos abaixo da terra vai a avó, sem reclamar palavra. A terra cobre 82 anos de história em 4 minutos. A menina coloca uma flor que arrancara do chão de cimento do cemitério em cima da plaquinha de bronze onde liam-se os dizeres: "Ivone Gebara Matta - 21/04/1928 - 22/07/2009. A flor que nascera no cimento era vida, e parecia cair tão bem na companhia de sua avó...A menina deixa cair mais uma lágrima e vira as costas, caminhando decididamente, mas ciente de que deixava para trás um pedaço do seu coração, da sua história e da sua inocência indolor da infância. Sabia que carregaria para sempre o peso e a tristeza de quem amou tanto e foi vítima do lindo porém cruel espetáculo da vida.

As lágrimas escorrem do olho da menina diretamente para o seu coração, que silenciosamente chora. Continua a procurar por um ombro, que talvez não exista, ou talvez seja luxo. A menina sorri e imagina uma flor nascendo do seu sofrimento. E ela nasce, deslumbrante como a tristeza de amar alguém que já não mais é.

Hoje é uma quarta-feira de um dia-possivelmente-ensolarado (não poderia dizer, ainda não abri as janelas). Resolvi (na verdade não se "resolve" escrever quando há uma real necessidade de botar a dor no papel; simplesmente se escreve) esse conto que, é claro, conta um episódio de minha vida: a morte da minha avó. Já faz bons meses.

Eu só queria contar que a dor passa. Ou melhor, ela se transforma. 19 anos de vida e tive que aprender na marra, sem piedade nenhuma, a lidar com a morte. Então é isso. Eu vim contar que passa. Que o amor pelas pessoas que nos "deixaram" é tão vivo e real que a morte passa a ser apenas um conceito biológico.

Botei toda a minha confiança no tempo (não dizem ser o senhor de todos os males?) O tempo é o tempo. Não há definição e nem metafísica que se aproxime de qualquer definição ou explicação satisfatória. E a morte faz parte do tempo. E esse mesmo tempo me permitiu deixar de sofrer pela finitude da vida.

Aprendi, com todas as minhas "perdas", que o que realmente tem alguma relevância são as impressões que deixamos em vida. Se a vida é uma passagem, eu não sei dizer. Mas que ela não é o fim, ah, disso eu tenho certeza. Se você realmente amou alguém (no sentido real da palavra), a morte simplesmente não existe.

Escrevi esse conto e essa "conclusão" extremamente não literária pra dizer que a dor é universal. É humana. Compartilhamos da mesma dor ao lidarmos com a morte.

Mas venho dizer - e com propriedade- que não há nada (muito menos um coração que simplesmente pára de bater) que destrua a memória e a história.

Eu estou aqui pra dizer que um dia - pode ser qualquer dia- você acorda e a dor passou.