MEU PRIMEIRO CONTATO COM A MORTE

 
       Dia 31 de agosto de 1972, Presidente Alves situada no interior do Estado de São Paulo, uma pequena cidade de aproximadamente cinco mil habitantes, foi abalada com a notícia da morte trágica de Eugênio Padoan.
    Eugênio era o caçula de uma numerosa família de imigrantes italianos, seus pais vieram da Itália ainda solteiros para trabalhar nas lavouras de café no auge da imigração italiana.
     Foram morar em colônias italianas que havia nas fazendas de café, lá se conheceram e casaram. Depois de trabalharem em várias fazendas por volta de 1955 foram morar na cidade, mesmo assim seu pai continuou trabalhando na fazenda até sua velhice.
      Eugênio nasceu em 15 de janeiro de 1927, e aos quarenta e cinco anos, solteiro morava com seu pai idoso, um irmão e uma irmã também solteiros.
    Amava o futebol na sua juventude jogou muito, dizem quem o conheceu que ele jogava bem, tinha uma paixão quase doentia pelo Palmeiras, ouvia futebol num velho radio de madeira que ficava num suporte na parede da sala.
   Quando o Palmeiras estava jogando ele ficava sentado numa cadeira embaixo do rádio e quando estava num ataque prestes a fazer um gol, Eugênio aumentava o volume do rádio bem alto, a o contrário quando o lance era contra, abaixava o volume que quase não dava para ouvir.
      Por gostar tanto de futebol desenvolvia um trabalho na cidade que o deixou muito conhecido e querido por quase toda a população. Era um trabalho voluntário realizado aos domingos e dias de folga com as crianças, organizava e dirigia o time de Dente de Leite, como era chamado.
     Morava num casarão de madeira que era como a sede do Dente de Leite, tinha um quarto desocupado onde eram guardados os fardamentos, bolas, redes, bomba de encher bola, chuteiras e outras coisas mais.
     Além do futebol também gostava de pescar e caçar de espingarda, o que na época não era proibido e muita gente tinha esse costume. Sua casa era freqüentada por jovens, adultos, colegas do futebol companheiros de pescaria.
   Quando não tinha o que fazer ocupava seu tempo mexendo em suas bicicletas.
  Sua irmã solteirona, apaixonada pelo Silvio Santos comprava regularmente carnê do Baú da Felicidade. Foi sorteada, conseguiu realizar o sonho de sua vida, ir a São Paulo participar do programa e conhecer pessoalmente seu ídolo.
   Nessa ida ao programa ela ganhou uma bicicleta que deu de presente ao irmão.
     Eugênio e um irmão casado que era seu vizinho, trabalhavam no DER (Departamento de Estradas de Rodagem), eram responsáveis pela manutenção de um trecho de estrada de aproximadamente oito quilômetros, via de acesso da cidade a uma rodovia estadual.
   Não sei por quanto tempo ele trabalhou nesse emprego, pois desconheço da data do seu ingresso, mas foram vários anos, no início a estrada era de chão no final da década de 1960 foi asfaltada.
      Os dois iam para o trabalho de bicicleta e andavam na contramão, que ficava mais fácil para ver e desviar dos veículos.
    Na tarde do dia 31 de agosto de 1972, como de costume ao termino da jornada de trabalho os dois arrumavam suas ferramentas na bicicleta para voltar para casa, seu irmão terminou primeiro e disse que ia andando na frente que sua bicicleta era mais velha e rendia menos na estrada. Eugênio ainda demorou um pouco, acabou de arrumar suas coisas, já tinha andado um bom trecho mas não alcançou o irmão.
     Um Jeep da polícia da cidade vizinha vinha no mesmo sentido e numa reta o atropelou colidindo por trás, Eugênio morreu no local do acidente.
      Até hoje ninguém sabe ao certo a causa do acidente porque não houve testemunha, uma hipótese provável é que tenha sido uma brincadeira e o motorista perdeu o controle, pois o policial que estava dirigindo era seu amigo.
      A cidade ficou chocada com o acontecido, no seu velório á noite a casa permaneceu cheia.
      No mesmo quarteirão que ele morava do lado oposto era a escola, o chamado Grupo Escolar, e todo ano tinha o desfile de sete de setembro, quando faltava umas duas semanas para o desfile já começavam os ensaios na rua, com fanfarra e o povo saia na porta para ver era uma alegria, mas, na noite de sua morte e a seguinte a diretora da escola suspendeu os ensaios em sinal de respeito.
    Agora que eu entro nesta história. Eugênio era irmão de minha mãe, quando a família mudou para a cidade ela recém casada continuou morando na fazenda que fomos criados.
     Meu irmão com quinze anos e eu com onze estudávamos a noite no ginásio, como era chamado na época.
      No dia deste fato chegamos à cidade por volta das dezoito horas e quarenta minutos, entrávamos para as aulas as dezenoves horas, era costume chegar sempre de quinze a vinte minutos antes encontrar os colegas na praça e ficar um pouco conversando.
  Neste dia logo que chegamos encontramos um colega que perguntou:
       --- Vocês vão à escola hoje?
       --- Vamos por que ?
     --- O Eugênio tio de vocês morreu hoje à tarde num acidente de carro.
      Voltamos correndo para casa e ao chegar encontramos nossa mãe chorando, já haviam avisado, trocamos de roupa e fomos para a cidade passar a noite no velório.
        A casa ficava no meio do quarteirão, quando viramos na esquina vimos muita gente na calçada e no meio da rua, entramos pelo portão da frente, para entrar na sala tinha dois degraus de tijolos, a casa era um pouco alta do chão de assoalho de madeira também.
        A porta de duas folhas estava aberta, a sala cheia de gente, anexo a sala do velório tinha um quarto que dormia Eugênio e o irmão, virando a direita tinha um longo corredor, de um lado mais dois quartos, um do meu avô e outra da tia, do outro lado o quarto que era usado para guardar os materiais esportivos, em seguida uma copa e uma grande cozinha e também anexo a cozinha um cômodo que usavam para guardar ferramentas e as bicicletas.
     Fui entrando foi uma sensação horrível, muita gente ao longo do corredor, na copa e na cozinha. Minha tia, aquela do carnê do baú, chorando e gritando como uma louca, pessoas conversando, comentando sobre o acidente, parentes conversavam outros choravam.
    A casa já tinha um aspecto triste, suas paredes por fora eram pretas desbotadas pelo tempo algumas tabuas corroídas, por dentro uma cor quase como cinza, não tinha forro, mal iluminada, olhando para cima era tudo escuro, um telhado preto pelo tempo e pela fumaça do fogão a lenha, com teias de aranha nas tesouras de madeira que sustentava o telhado.
    Aquela noite marcou-me profundamente, pois foi meu primeiro contato com a morte na família. Eu sentei numa cadeira na copa, em meio aquela confusão, na parede que separava a copa do quarto da minha tia, tinha um calendário pendurado, daqueles que geralmente tem a estampa grande de um santo, igreja ou outra imagem e embaixo um bloco de folhinhas pequenas uma para cada dia do ano com o nome do mês encima e o dia em algarismos grande.
     Eu olhei na folhinha Agosto 31, essa imagem ficou gravada na minha memória que todos os anos seguintes e já faz quarenta e três, nesse dia eu lembro daquela terrível noite do velório do tio Eugênio.
      Para piorar a situação de madrugada minha mãe levou minha irmã e eu para dormir no quarto que era guardados os materiais do time, vencidos pelo cansaço dormimos um pouco, mas lembro que ao acordar ainda na penumbra olhei e encostado numa parede estava a tampa do caixão.
    Tudo isso teve conseqüências na minha vida, foi difícil para superar aquela má impressão que ficou daquela noite, numa época onde pouco se conhecia de problemas psicológicos, ainda morando na roça não foi fácil.
    Com o tempo e alguns remédios superei o trauma mas as marcas ficaram, por muitos anos eu sonhei com aquela casa, tive pesadelos, sonhava que estava sozinho lá dentro e saía correndo, sonhava que estava morando na casa e não conseguia ficar no quarto, sonhava também que tinha que entrar sozinho e não conseguia.
    Hoje aquela casa não existe mais, mas as vezes ainda sonho com ela.
    Penso que tudo aconteceu por falta de sensibilidade dos adultos, meus pais e tios porque tinha casa de parentes que nós crianças poderiamos ter ficado e teria evitado todo esse efeito negativo na minha vida.

 
João Batista Stabile
Enviado por João Batista Stabile em 31/08/2015
Reeditado em 31/08/2019
Código do texto: T5366260
Classificação de conteúdo: seguro