Surpresa!

- Ele tá meio atrasado, num tá?

- Ah, num sei, que horas são?

- Sete e vinte.

- É, a gente tinha marcado pras cinco horas...

- Não, a gente marcou pras cinco horas pra preparar a surpresa né? ou seja, a gente chegava umas cinco, e ele sei lá, chegava depois.

- Verdade. Que horas que ele ia vir, Marcelo?

- E eu lá sei. A Jéssica só me convidou, não deu mais detalhes.

- Ô Jéssica! Fala aí, que horas era pra ele vir?

- Eu não lembro... não era o Fábio que ia avisar ele?

- Vocês são tudo uns enrolados. Fábio, que horas o Mateus ia chegar?

- Ah, até onde eu sei ele vinha direto da faculdade... então umas seis e pouco era pra estar aqui.

- Mas cê num confirmou com ele nem nada?

- Ia confirmar o que? “Ô, cara, cê vai pra sua casa amanhã? Vamos te fazer uma festa surpresa!” Num dava né.

- Mas o que cê falou?

- Perguntei que horas ele vinha pra casa, ele falou “depois da faculdade”.

- E ficou nisso?

- É, ué. Cê queria o que? A Gi que ia sair com ele daí, num era?

- Ah, verdade. Depois da faculdade eles iam tomar um café pra gente terminar as coisas aqui. Vou ligar pra Gi então, avisar pra virem já.

Ouvem o portão se abrir.

- Gente, abaixa, se escondam, ele tá vindo!!!

- Se fosse ele, certeza que ele teria ouvido você gritando, seu tonto. Não é ele, olha aí, é a tia Sandra, que já voltou do mercado.

- Trouxe alguns refrigerantes a mais, nunca se sabe né... Nem sinal dele?

- Nada dele ainda, tia. Vou ligar pra Gi, ver como estão as coisas.

- Tá bom. Vou tirar o bolo da geladeira...

Ligação.

- Gi, e aí?

- Tô chegando, tô na rua aqui já.

- Ela disse que eles tão aqui na rua já, então se preparem!

- Vou me esconder na sala.

- Não é esconde-esconde, Carlos!

- Faço o que então?

- Só se abaixe, aqui na cozinha mesmo.

Barulho no portão.

- Parabéns pra voc... ué, cadê o Mateus?

- Ele não veio comigo, teve que fazer umas coisas...

- "Umas coisas"?

- É, ué. Eu tava com ele, daí falei pra virmos pra cá. Ele disse que precisava fazer umas coisas antes de vir, e que era pra eu chegar aqui e subir pro quarto dele. Até achei melhor mesmo vir antes que ele.

- Ah, que ótimo, agora a gente não sabe que horas ele vai chegar...

- Capaz que ele não demore, eu acho. Vou subir pro quarto dele.

- Chega depois e ainda não quer ajudar...

- Tem mais alguma coisa pra fazer aí?

- Não...

- Então tô subindo.

- E agora?

- Agora a gente espera.

- Eu não vou embora muito tarde... Tem trabalho pra amanhã ainda.

- Nossa, verdade! Tem trabalho do Gilson.

- Tô cansado dos trabalhos dele já.

- Toda aula tem um, sim, cansa! Mas cê sempre deixa pra última hora também...

- Cuida da tua vida, ô!

- Pessoal!!! Subam aqui!!!

- O que foi?

- Venham aqui agora!!!

Sobem.

- Agora eu entendi o porquê ele me mandou subir direto pro quarto dele.

- O que foi?

- Vejam.

Mostra uma folha de caderno para todos.

- Vou ler.

“Olá, mãe. Tudo bem? Espero que sim, ao menos quando saí de casa estava, e espero que continue assim. Sim, hoje é meu aniversário, tô completando dezenove anos, uau, você me aguenta há muito tempo mesmo hein! Gostaria de te agradecer por ter feito tudo que fez por mim durante todo esse tempo, você me ajudou em tudo, sempre. Sempre esteve do meu lado e eu nunca vou esquecer disso. Espero poder estar do seu lado em breve. Mas talvez não. Eu não sei o que você pensa de mim. Mas sei o que pensa de outras pessoas parecidas comigo. E eu não te culpo. Mas eu também não sou culpado, por nada. Não há nada para nos sentirmos culpados. A única coisa que eu sinto muito é ter de me separar de você. Estou indo embora. Não te deixando, pode ter certeza, você vai comigo, aqui no meu coração. Mas eu estou partindo rumo à minha verdadeira vida. Eu nunca gostei da faculdade. Comecei para agradar ao pai, mas como agora ele já não se importa mais comigo, então não faz sentido. E eu não me importo mais com isso. E com “isso” eu quero dizer a faculdade, não o pai. Eu ainda me importo com ele, e espero que ele fique bem. De verdade. Embora ele tenha me batido algumas vezes. E embora em uma dessas vezes eu tenha acordado no hospital, todo dolorido. Mas o mais dolorido foi saber que eu estava daquele modo por conta de alguém da minha família. Isso sim foi muito mais dolorido. Era dolorido todo dia ter que acordar e olhar para ele. E pior ainda tomar café com vocês. Eu chorava todos os dias por isso. Porque eu não queria te ver deste modo. Eu não queria te fazer mal, mas eu fazia, sem motivo algum. Ele te fazia mal. E aparentemente, eu era o motivo. Então, me desculpe pelas vezes em que você teve que me defender em nossas brigas. Me desculpe por esse trauma. E esse é um dos motivos pelo qual estou indo embora. Eu não consigo conviver com vocês brigando por minha causa. Eu não consigo deitar a cabeça no travesseiro e ter paz. Eu não consigo olhar no espelho e sorrir. Eu não me reconheço. Me desculpe por não ter sido quem você sempre quis. Acontece que eu preciso ser quem eu sou. E é isso que me basta agora. Eu sei que você me ama. Eu também te amo, e muito. Pode ter certeza. Eu ainda tenho a gravação do meu aniversário de quinze anos, quando você cantou “Querido, Não Se Vá” no karaokê, e talvez, você já pressentisse o que um dia viria a acontecer. O que está acontecendo agora. Essa música ainda ecoa em minha cabeça, e acho provável que eu passe minha viagem ouvindo essa música, e oscilando entre choro e riso. Eu sentirei muito a sua falta, mas não posso dizer pra onde estou indo. Talvez nem mesmo eu saiba. Talvez eu só vá pegar um ônibus qualquer, indo pra qualquer lugar. Eu preciso me achar. E sei que nunca vou conseguir isso aqui. Está tudo uma loucura, e eu não aguento mais. Eu só sei que não consigo mais viver aqui. Eu amo os amigos que tenho por aqui, mas isso não é tudo. Por muito tempo eu tive que me esconder, muitos não sabem sobre a verdade. E eu não faço questão, talvez eles também não entendam. Mas eu espero que você entenda, e que você aceite isso. Preciso terminar de escrever essa carta, que deveria ser apenas um bilhete, porque senão vou me atrasar, e hoje o dia será cheio. Muitas coisas minhas vão continuar por aqui, não conseguiria levar tudo de uma vez. Minha mochila está cheia de coisas que vou precisar por enquanto, e com o tempo as coisas vão se encaixando. Espero que se encaixem. Espero também que as coisas aqui em casa melhorem. Eu te amo. Não chore. Até mais,

Mateus, seu filho.”

Kaíque Campos
Enviado por Kaíque Campos em 26/08/2015
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