Nada para fazer

O distinto senhor na mão trazia uma garrafa de tequila importada, uma José Cuervo Black, caríssima. A passos lentos, locomovia-se, quase se arrastando em direção aos boxes das atendentes do supermercado. Sim, as atendentes, pois eram todas mulheres.

Ao passar por um carrinho, com alguns poucos produtos em pequenas quantidades, todos eles bem baratinhos, enfiou ali -- entre o feijão, o arroz, a farinha, o charque, o macarrão, o açúcar, o café& --, a garrafa da tequila, cobrindo-a, camuflando-a com uma agilidade espantosa e, mais que isso, surpreendente.

Alguns minutos antes, em outra parte do supermercado, uma também distinta senhora protagonizava uma cena similar. Só que o produto camuflado entre outros em um modesto carrinho alheio, não era uma bebida. Era uma barra importada de chocolate suíço, também produto caríssimo.

Mais tarde, na seccional de polícia mais próxima dali -- soube-se, então, que se tratava de um casal, marido e esposa --, explicaram a situação, muito mais frustrados, em terem sido pegos com a boca na botija, que arrependidos. Tudo começou assim: eles se sentiam entediados, os filhos e netos sem visitá-los, nem ao menos dando notícias, o presidente Lula decretando a ilegalidade dos bingos; em suma, sem nada para fazer, foram às compras.

Já em um supermercado próximo da casa deles, viram a confusão formada quando um sujeito meio embriagado pegou por engano um carrinho de uma mulher, diga-se de passagem muito bem vestida. Ela fez um verdadeiro escândalo. Era só um ‘engano’, mas o pobre coitado foi escorraçado por ela. Foi aí que, num átimo, veio a ideia: simultaneamente, os dois pensaram e tramaram aquela divertida maneira de passar seus entediantes dias de idosos e aposentados.

O delegado, chamando a um canto da sala um sujeito bem vestido, conversava. O homem balançava frequentemente a cabeça, em meneios para cima e para baixo, em anuência com o que dizia a autoridade policial. Em pouco tempo, aproximaram-se, com o delegado, com apenas um gesto, dispensando o escrivão, que se evadiu depressinha, como se lhe chamasse aquele fumegante cafezinho lá da copa.

-- Seu Jurandir, dona Amélia, sou o delegado Alfredo. Este aqui é o gerente do supermercado, senhor Alberto. Ambos concordamos que, se nos derem garantias de que não vão mais fazer o que fizeram, estão livres para ir para casa. Pode ser?

Em casa, os dois tentaram jogar sueca, biriba, pôquer, paciência... e sem paciência um com a outra, ficaram arengando, insultando um à outra. Insultando a outra ao um. Tiveram, então, uma luminosa ideia: ora, há supermercados, e muitos, em outros bairros, atendidos por outras seccionais de polícia! E foram aprontando das deles por toda a cidade de Belém. Conheceram vários delegados, gerentes, seccionais. Não podendo mais fazer o que gostariam na capital, exauridas todas as possibilidades, partiram para “atacar” outra cidade. Começaram por Ananindeua.

Por essa ocasião, espalhou-se uma onda de trotes dessa natureza, todos eles praticados por idosos. Tudo porque se espalhou a notícia da brincadeira ‘anarquista’ do casal de velhinhos, que já havia se tornado um fenômeno de popularidade. Contudo, não se restringiam aos supermercados. Farmácias, lojas em geral, não havia comércio fora do âmbito do ‘protesto’ dos idosos, que agora já não se atém ao simples fato do trote de acréscimo ou troca de mercadorias. Um idoso chegou ao cúmulo de trocar os produtos de uma prateleira para outra, ou de um setor para outro, desorganizando por completo o sistema de arrumação dos produtos, muitas vezes misturando comida com inseticidas, por exemplo.

O clímax de tudo, a exacerbação da ‘brincadeira’, chegou ao limite da paranóia, quando um velhinho entrou em um supermercado vestido de pirata e, com a espada de plástico desembainhada -- uma daquelas dos tais japoneses fajutos chamados de Changemen --, gritou que estava tomando aquele navio, ele, o Capitão ou o Almirante Tamandaré ou o Alexandrino, sei lá, e que iria enxotar dali todos aqueles contrabandistas paraguaios que dominavam as vendas ali naquele Shopping Center.

Em uma reunião entre delegados das seccionais de polícia da região metropolitana, ficou decidido que teriam de solucionar a questão, de qualquer jeito. Saindo da reunião, que não tratou o assunto como prioritário, visto que outros pareciam mais espinhosos, pelo menos aparentemente, como era o caso das gangues juvenis, dos assaltos chamados de ‘parada dada’, dos sequestros relâmpagos e da superlotação dos presídios, alguns mais chegados resolveram discutir a situação vextória para eles em uma choparaia na praça de alimentação de um shopping. Antes, um deles convidou, a contragosto da maioria, uma colega delegada, mais por educação, já que seria uma delegada apenas entre vários delegados, e ele pensava que ela não aceitaria o convite. Ela aceitou.

Várias torres de chopes depois, alguém entra no assunto:

-- Como é que é, a gente vai dar um jeito nessa velharada, mesmo?

-- Velharada!? É assim que você trata os velhinhos?

-- Olhe, desculpe delegada, não quis ofender. Foi força de expressão. Estou meio estressado. Essa reunião acabou comigo. Além do mais, é que aquele casal de velhotes fez mais uma daquelas bobagens que foram bater lá no meu terreiro. O gerente dessa vez tava uma fera. Desculpe, sinceramente, delegada, sei que sua mãe e seu...

-- Não precisa colocar meus pais na berlinda!

-- Perdão, de novo!

-- Tá, tá... Eu estou tão interessada em solucionar isso, mas não a qualquer custo. Alguém aí sabe por quantas anda aquela emenda dos bingos lá em Brasília, no Congresso?

-- O lobista lá disse que tá dando um jeito de apressar a tramitação. Disse que os congressitas tão empenhados.

-- Ah! Que bom! Não aguento mais!

-- Mas, enquanto isso, o que nós fazemos?

--Cara, não sei quanto a você, mas eu tô a fim de outra torre, que essa aqui já foi. Ei, meu amigo, outra estupidamente gelada!

Todos caíram na gargalhada, inclusive a delegada.