São Paulo - A cidade abandonada (Provisório) - Parte 2
Com 27 anos já tinha a minha casa quitada. Terminei a faculdade dois anos antes da turma, estudava dia e noite. Fiquei pouco tempo trabalhando em um hospital pequeno para preencher alguns requisitos burocráticos. Arrumei o trabalho na previdência sem precisar de entrevista formal ou concurso, me indicaram.
Meu salário não era nada ruim, mas sempre preferi coisas simples, coisas que eu gostasse, e não o que os outros me empurravam por ser tendência ou ter status. Se eu fosse mais simples que isso, eu seria o Ricardo. Na minha casa de trinta metros quadrados, você encontrava uma geladeira, um fogão, um armário, um notebook, guarda-roupas e colchão sem cama.
Comecei a me encontrar todos os dias com Ricardo. Às vezes ele dormia na minha casa e outras eu dividia um espaço com ele embaixo de uma ponte ou em cima de um telhado, já estava me acostumando.
Quando eu dormia na rua, passava em casa para tomar um banho rápido pra ir para o trabalho. A cada dia mais relaxado, comecei a aprovar o auxilio para pessoas que estavam aptas a trabalhar, mas precisavam do dinheiro que o trabalho não pagava. Tinha risco de ser demitido por isto, mas queria ajudar estas pessoas mais simples. O antiprofissionalíssimo não se aplicava a mim, o que eu achava importante é que era importante. Ligava cada vez menos para regras impostas por leis ou pela sociedade. Se antes de conhecer Ricardo eu já não ligava muito, imagine depois.
Todas as noites nós conhecíamos uma pessoa nova que passava pelo Tietê. De bandidos a policiais. Certa noite nós conhecemos um cara que nos disse que fazia bombas caseiras e drogas, mas descobriram e foi preso. Ficou sem nada. Da prisão pra rua, direto, sem mais nada pra perder.
Como sou curioso sobre a vida de mendigos, ficamos a noite conversando sobre o que ele fazia e como foi pego.
O pai dele era químico, mas não qualquer químico. Químico que vende suas obras seja explosivo ou drogas. Ninguém sabia de onde ele tirava as matérias primas pra tais façanhas, toda semana chegava uma caixa grande na porta deles. O importante é que os conhecimentos básicos foram passados pro Lopes. Quando seu pai faleceu por intoxicação de fósforo na produção de metanfetamina, Lopes herdou os clientes de seu pai, continuando no rumo até um cliente ficar insatisfeito e denunciar. Foi pego no flagra fabricando TNT.
Com uns detalhes aqui e outros ali que não são importantes, nos contou muitos fatos de sua vida. Foi assim que conhecemos Lopes. Apegamo-nos a ele por ser inteligente, só usou a inteligência para algo que a sociedade julga errado.
A conversa fluía muito naturalmente naquela noite. Ele nos disse tudo o que já fabricou, de lança perfume a nitroglicerina.
Começamos então a gostar de química. Queria aprender. Claro que eu aprendi na faculdade, mas lá não ensinam a fazer dinamite com produtos caseiros.
Lopes nos dava aulas teóricas sempre que nos encontrávamos, era interessante. A química é infinitamente interessante para quem a compreende, imagino então para quem a domina. Como viciados, Ricardo e eu queríamos sempre mais, até que começamos a por a teoria em prática.
Era só termite, feito apenas com alumínio em pó e ferrugem na proporção certa. A primeira tentativa deu errado, a segunda também. Depois de quase desistirmos, tentamos uma ultima vez. Aquele brilho intenso como do sol fez nossos corações dispararem de alegria. Como não saberíamos como seria a reação, fizemos em cima uma mesa de plástico na conveniência de um posto. A parte plana da mesa derreteu como manteiga na panela quente. Tivemos que pagar outra mesa para o posto, mas foi divertido. Ainda gerou uma lembrancinha, um tipo de esfera feita de alumínio e ferro sobrou depois da queima da termite.
A partir de então testamos em todas as coisas para ver o que acontecia. Gelo, carros velhos abandonados, borracha, madeira, cerâmica. Nada resistia ao calor da termite e derretia.
Convidamos Lopes para participar da nossa rotina. Por falta de dinheiro ou amizade, ele topou. Como já estava morando na rua, deu várias ideias de locais para usarmos termite. Recusei todas, Ricardo não. Já estavam começando a vandalizar pela cidade.
Em uma madrugada, os dois fizeram dois quilos de termite e derreteram um caixa eletrônico no estacionamento de um mercado. Foi pra mídia logo pela manhã, com suspeitos não identificados. Por amizade ou burrice, continuei andando com eles, ouvia todos os planos e no dia seguinte eu sabia quem eram as pessoas que derreteram as tampas de bueiro da Av. Paulista ou os vândalos que derrubaram um semáforo no Ibirapuera após derreter a base. Não sei por que, comecei a me interessar.
Achava errado destruir patrimônio público até Ricardo me dar uma lição.
– Fazem você acreditar que é público. Você não paga tarifa de ônibus para melhorarem o transporte, mas sim para engordar a conta de alguns. Nada é público, cara, não se deixe enganar.
Realmente é assim que funciona. Quando um grupo de pessoas tenta juntar milhares de pessoas para manifestação para o transporte ser gratuito, ou o líder é preso e alegam falsos crimes contra ele, ou todos saem na porrada, com o governo sempre ganhando. As pessoas assistem na TV achando que é uma perda de tempo e vandalismo, mesmo quando as manifestações são para o bem dessas próprias que estão sentadas no sofá criticando. Aqui ninguém se ajuda e depois reclamam do transporte público indecente.
– É um bem de todos, porém não gratuito. Já não bastam os impostos absurdos que todos pagam? Na verdade, o transporte público é uma mercadoria. Tem ideia da quantidade de dinheiro que é desviado? Muito. Você paga cada vez mais caro por algo que nunca melhora.
A partir desse dia mudei de ideia sobre o vulgo vandalismo. Vandalismo pra mim era destruir as coisas sem motivo, só por diversão, o contrário da ideia de Ricardo.
– Estamos assustando e enfurecendo as pessoas. Até agora a policia não se deu ao trabalho de tentar nos pegar, mas é questão de tempo. O povo vai reclamar com o governador. Depois que a caçada começar, os policiais vão prender suspeitos que ficarão furiosos por serem confundidos com nós. Quanto mais gente puta com o sistema e com nós, melhor, assim desconfiam que o governo não consiga as proteger.
Fazia sentido. Mas o que aconteceria se muitas pessoas se enfurecessem só o tempo nos diria. Enquanto nada acontecia, me juntei aos dois nas aventuras das madrugadas. Demos laxante a uma ninhada de pombos perto de um estacionamento. A imagem dos carros com várias pintas brancas e verdes apareceu nos jornais com o título ‘Vândalos da cidade continuam à solta, polícia começa a agir’.
Mais alguns dias e algumas aventuras e foram pegos mais de quinze suspeitos, nenhum era realmente o autor, mas ninguém sabia. A cidade comemorou, não acreditando que aqueles quinze inocentes eram de fato inocentes. Fiquei muito nervoso com isso. Ninguém liga se a pessoa fez uma coisa ruim ou boa, a partir do momento que aparece na mídia como culpada todos caem em cima. Ou aqueles homens já tinham dado problemas antes, ou a polícia estava com preguiça de pegar os verdadeiros autores. De qualquer modo, o povo e o governador ficaram satisfeitos com a situação.
Decidi então ir mais além, ver o que acontecia. Ricardo me impediu, dizendo que por hora já estava bom, para deixar entendido que os suspeitos eram os autores, já que depois da prisão deles o vandalismo parou. Não queríamos ser presos, era bom maneirar. Enquanto isso, aqueles caras que foram presos alimentariam a raiva a cada dia e quando fossem soltos, iriam atrás de nós e dos corruptos que os prenderam.
Pensei que não passaria daquelas brincadeiras, que estávamos ajudando alguém desconhecido a dar o primeiro passo pra revolução. Eu estava enganado.