São Paulo - A cidade abandonada (Provisório) - Parte 1
Boom! Anos de planejamento que finalmente chegaram ao fim. Três estações do Metrô e dois terminais rodoviários viraram cinzas.
A cidade, ou grande parte dela, acordou com o barulho das explosões e com o tremor da onda de choque. As luzes começaram a acender, ambulâncias começaram a circular e helicópteros a sobrevoar ao redor das grandes chamas e toneladas de fumaça. Ficamos ali observando o trabalho bem feito e brindando aos nossos amigos que deram a vida para isso acontecer.
Era o inicio do fim, o fim da era da acomodação.
Anos antes eu era um simples trabalhador. Ficava sentado na minha sala esperando pacientes para julgar se eram ou não aptos a receber o seguro doença. Muitos me odiavam e recebia ameaças por não lhes darem o auxilio por terem a unha encravada ou calvície.
A vida era simples e tranquila: ao acordar, comia frituras, pegava ônibus e trem para ir ao trabalho, cumprimentava os colegas de trabalho e ia pra minha sala. Almoçava, atendia mais pacientes e saía às 18h00min, mesmo que não atendêssemos mais depois das 17h00min. Era a burocracia, tínhamos que seguir as regras.
Tinha poucos amigos, moradores de rua, que eram o bastante pra mim. Fim de semana saía, passava a noite fora bebendo e badernando quando possível. Mas de segunda à sexta-feira eu era mais um grão de farinha da grande massa. Seguindo as regras, pegando filas, me apertando nos transportes públicos.
Na época da faculdade, sempre depois das aulas eu passava no Tietê e ficava ali na estação conversando com um ou dois mendigos que peguei amizade em um dia de bebedeira. Não era incomum eu pedir pra um estranho se juntar a mim numa refeição ou para acompanhar em alguns drinks, nunca julguei por aparência. Mas é claro que um ou outro sempre extrapolavam, e eu me afastava. Continuava frequentando o lugar mesmo depois de formado.
Por causa época de faculdade criei alguns colegas suspeitos, mas nunca me envolvi com nada do que faziam.
Tinha um cara que saiu da prisão em dois meses por ter roubado um caixa eletrônico. Com o dinheiro do caixa eletrônico ele comprou o juiz. Injusto, mas deu certo pra ele.
Vivendo um dia após o outro, me encontrava às vezes com um amigo ou outro, conversava sempre numa boa, pois eles me respeitavam do jeito que os respeitava como pessoas.
Ricardo, esse era o nome do cara que me apresentou um mundo de liberdade.
Andando com ele, aos poucos fui me tornando mais livre de regras. E tudo começou justo no dia em que o conheci no Tietê.
– Ae, cara, empresta o isqueiro?
Tirei o isqueiro do bolso e o entreguei. Achei estranho ele não estar com cheiro vencido, pois as roupas não negavam que ele morava na rua.
– Quer um cigarro? – Ofereceu pra mim, mesmo com um cigarro na minha mão. – Estou querendo parar e meu maço está cheio aqui.
– Não, obrigado. Tenho aqui. Quer beber um vinho ou cerveja? – O convidei como faço com todos.
Eu analisava tudo enquanto as palavras saiam da minha boca. Como ele estava com a roupa tão ruim se provavelmente tinha acabado de se mudar pra rua? Pensei nisso por ele ter dinheiro pra comprar um cigarro de marca popular e cara. Estava louco pra conhecer a história daquele cara.
– Por que não? Tenho tempo de sobra. Vamos lá que a gente divide a conta.
Ricardo era milionário, mas usava o dinheiro apenas para o essencial. Não tinha casa nem carro. Usou aquela roupa por dois anos, mas sempre as lavava. Tinha uma mala ali perto com barbeador, roupas, um par de coturnos e mais um par de chinelos, que arrebentam com frequência.
Ele investia em empresas, comprava ações em um dia e vendia no outro, sempre curto prazo. Como ele mesmo me disse, ou ele era inteligente ou sortudo, pois fez oitenta mil reais virar três milhões em cinco anos. Então decidiu abandonar o mercado de ações e investir na vida, vivendo um dia aqui e outro ali, da forma mais simples possível.
– Pra mim, ter dinheiro não significa ser parte desse sistema imundo, suas atitudes é que variam de nobres a filhas da puta. Não me sinto culpado por ter esses milhões, pois não roubei nem recebi pra ficar calado. Ele foi conquistado. Mas logo menos ele não valerá mais nada.
Já meio embriagado, perguntei da razão pra três milhões de reais desvalorizarem em tão pouco tempo.
– Imagine um mundo onde cada um corre atrás da sua comida.
Onde ninguém dependa de terceiros. As grandes cidades vão se esvaziar, não haverá nada útil por aqui, e teremos um futuro lindo para o planeta, porém selvagem para os humanos. Que tipo de futuro você esperaria além deste? Respondendo sua pergunta: alguém vai agilizar este processo. E, meu amigo, tenho certeza que não falta muito pra isso, tem muita gente puta com o sistema. Só estou esperando alguém começar uma guerra.
Raramente pensava nesse assunto, e quando pensava era bem superficial, como "O planeta não vai sobreviver" ou "O humano é uma desgraça", nunca pensei que uma pessoa poderia começar uma guerra. Mas depois de conversar com Ricardo, percebi que estes pensamentos são apenas a ponta do iceberg. Os humanos são muito dependentes, não é preciso muito para que nós sejamos extintos por nós mesmos. Tire nosso dinheiro e o que sobra é guerra por terras, água e comida.
– O que mais me impressiona é que a sociedade nem se importa com o próprio futuro. Atacam uns aos outros de forma que acham que é inteligente, usando palavras, argumentos, e sempre atacam as pessoas erradas. Isso não muda o mundo, atitudes mudam, na hora e locais apropriados.
Gostava cada vez mais dele.
Muitas ideias batiam. Uma conversa e uma garrafa de cerveja. Outra conversa e mais cerveja. Percebi que não poderia ir mais pra casa por falta de transporte na madrugada.
– Tenho uma barraca aqui perto, se quiser. Não me importo em dormir fora, hoje não está frio.
– Não, obrigado, acho que vou pegar um taxi. – Respondi
– Pare com isso. Está desesperado para chegar ao seu cantinho confortável e feliz? Acabamos de falar que isso vai acabar e você acaba de provar que está do lado da sociedade.
– Acho que você bebeu muito.
– A vida é curta, aproveite o máximo enquanto não estamos em guerra. Aposto que você nunca dormiu na rua.
– Não e nem quero.
Mas ele acabou me convencendo, acabei dormindo na barraca embaixo da ponte onde passa o Metrô. Para falar a verdade, dormi muito bem naquela noite. Depois de acordar passei em casa somente para tomar banho e já corri para o trabalho.