Brincando de viver...

Ainda ouço o eco de seus passos apressados pela rua. Seus sapatos especiais e seu terno completo de casemira inglesa xadrez (bem pequenos), num talhe perfeito de algum alfaiate esperto na tesoura e na máquina de costura vigorelli. Um chapéu de feltro caro enterrado até o fim da cabeça de forma que não dava pra ver a cor de seus cabelos. A bengala girando a moda Chaplin. O vinco da calça esticadinho sobre os joelhos fazendo a calça armar em forma de triângulo. Seu sorriso débil fazia com que ele pareçesse que tinha alguma deficiência e aqueles óculos de armação preta e lentes de fundo de garrafa não diminuiam esta impressão. Aquele homem aparentava ter uns cinquenta anos de idade. A cada mulher que passava se assanhava todo e piscava os olhos insistente entre um assovio e outro. Cantarolava alegremente e ao se aproximar de um boteco na rua do ouvidouro ele sorria ainda mais largo e apressava ainda mais o passo. Entrava naquele recinto sujo e mal arrumado e sentava a uma mesa no fundo. Esperava até que saisse o freguês que tomava uma pinga mal cheirosa em um copo de vidro comum. Logo após a saída do homem ele chamava o garçon e fazia com a outra mão os contornos da mão direita que espalmada, mostrava sua verdadeira intenção. O garçon trazia a bandeija bem arrumada demais para aquele lugar, e tocava com o polegar um pequeno girassol no centro dela. Logo em seguida a parede ao fundo se afastava e aparecia uma passagem por onde o homem entrava rapidamente. O garçon então tocava novamente o girassol e a parede voltava a seu lugar.

A escuridão vista de fora, que havia no outro lado não mostrou o conteúdo de seu interior. Do outro lado da parede, o velho observava a cena que ali se deserolava. Grupos de dois idosos sentados em mesas diferentes jogavam Gamão. Os tabuleiros com 24 triângulos chamados casas ou pontos estavam em fases diferentes. Cada conjunto de seis triângulos adjacentes constituiam um quadrante. As casas de 1 a 6 constituem o quadrante interior ou o home board. As casas de 7 a 12 constituiam o quadrante exterior ou o outer board. O homem sabia estas informações de cor. Era um eximio jogador de gamão.Toda vez que ele chegava ali era a mesma coisa. O grupo se apercebia da presença do outro e o recebiam com alegria e efusão. Ele escolhia a mesa e sentava com outra pessoa que geralmente estava sem par a espera de alguém para jogar consigo.

O jogo começava, e as vezes seguia bem até mais tarde. Em alguns dias , no entanto, começaria se naquele momento não aparecesse uma mulher com um pau de fazer macarrão na mão, e começasse a gritar para eles que estava ali pra acertar as contas e ensinar um velho babão qual era seu lugar. A parede ainda nem tinha fechado direito e assim o velho se levantava e seguia a mulher como se fosse um cachorrinho bem mandado.

A saída daquele recinto era bem diferente da entrada. O velho andava devagar e taciturno. Seus passos eram curtos e as suas pernas pareciam pesar uns duzentos quilos. Seu sorriso desapareceu e a bengala já não girava mais, servia de escora para ele não cair. A esta altura o velho aparentava ter uns noventa anos de idade. Encurvado sobre a bengala e a passos curtos ganhando a rua com cuidado, ele gemia a cada passo e parecia que lhe era muito difícil a caminhada. Retirado o chapéu que lhe cobria a cabeça, avistava-se a careca que já tomava conta de quase toda a cabeça e seus cabelos brancos que ainda restavam. Na cintura já se poderia ver uma bolsa que ali pendurada , cumpria seu papel medicinal.

A mulher segurava o rolo de fazer massa na mão e o batia levemente na palma da mão de vez em quando, numa ameaça velada o velho. No rosto dela um sorriso diferente. Os óculos de armação já não lhe pareciam tão normais. Pareciam bem maiores e assim, seus olhos vistos através da lentes, ficavam pequenos demais a ponto de sumirem aos olhos aos outros transeuntes. Já na calçada, um pouco a frente, a cadeira de rodas o esperava com o motorista. Ele se aproximava dela e desabava sem cuidados. Com a cabeça baixa ele tinha a bengala retirada e o chapéu também. Uma coberta era colocada sobre suas pernas e assim ele era levado dali. O motorista empurrava a cadeira e a mulher seguia logo atrás. Já não segurava mais o pau de macarrão. Seguiam para o outro lado da rua e lá ficavam ao sol por um longo tempo.

Do outro lado, no boteco, o garçon, meu amigo de longa data, observava tudo. Aquele velho fazia isto de vez em quando. Não sabia de onde ele tirava forças para vir até ali. Sabia, sim, que ele tinha sérios problemas de saúde e que não poderia andar sozinho pois corria o risco de cair e ser atropelado. Mas quando ele chegava ali, a festa era a mesma. Sabia que quando a nora chegasse , o levaria, mas não impedia o velho de entrar. Não tinha coragem. Sempre achava que algum dia ele conseguiria chegar bem antes dela e conseguiria jogar o seu jogo predileto sem interrupção. Até esse dia, continuaria tentando ajudá-lo, afinal, o pau de macarrão não seria nem pra ele e nem para o velho.

Eu assistia a tudo isto impassível do meu banco da praça, e até agora não acredito no que me contou meu amigo garçon que foi ao seu velório:

"Aquele velho tinha 102 anos de idade e morreu de um aneurisma no cérebro que se rompeu, e um câncer na próstata, na semana passada. E que a Nora dele fazia isto com ele para incentivá-lo a viver mais. Era um jogo entre os dois. Uma brincadeira. Na sua solidão, o velho queria que todos pensassem que ele tinha alguém. Nem que fosse uma mulher braba que cuidasse dele e se divertia com isto. E ela, a nora dele, foi a pessoa que mais chorou no seu velório".

Nilma Rosa Lima
Enviado por Nilma Rosa Lima em 14/08/2015
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