Flores para você, meu amor.

O relógio natural da praça indicava meio-dia. Eu estava sentado ali havia alguns minutos. Minha sombra projetada sobre ele atrapalhava as pessoas que queriam ver as horas. Algumas crianças me criticaram pelo fato de eu estar sentado em cima da grama. Mas eu não escutava ninguém. Aquela cidade era estranha pra mim e eu queria apenas ficar sozinho. As lágrimas molhavam meu rosto e caíram com mais abundancia quando as crianças falaram, de forma que se arrependeram de terem chamado a minha atenção e me deixaram em paz.

Cansado de ouvir tantos tre le le les, fechei os olhos e fiquei ali quietinho a pensar na vida. Pareceu-me ouvir sua voz, minha querida Belinha. Você cantava aquela canção que me ensinou a cantar nem bem eu completei dez anos de idade. Namorar você no colegial foi maravilhoso também. Suas trancinhas de criança se transformaram em longas madeixas negras que balançavam ao seu andar e ao sabor do vento forte e da brisa.

Minha menina mulher. Que linda dama você se tornou. Como ficou linda em seu vestido de casamento. Tão linda que ao dizer sim me emocionei. Aos trinta anos eu ficava ainda de queixo caído ao ouvi-la falar em um microfone. Na escola onde voce ministrava aulas de Matemática e História do Brasil, no púlpito da igreja onde você fazia lindas reflexões da palavra de Deus. No plenário da câmara Municipal da nossa cidade onde você se "Consagrou" vereadora pois foi eleita com a maioria dos votos da população. Sobraram poucos votos pra eleger outros vereadores. Quanto orgulho eu sentia cada vez que ouvia você falar. Seu dom da retórica me encantava. Tanto que quando vi você fazendo faculdade de direito achei mesmo que você estava no rumo certo. Estudou com afinco e passou nas duas provas da OAB antes de terminar a faculdade. Quanto orgulho eu senti quando você recebeu aquele diploma das minhas mãos. Era como se eu estivesse lhe dando o algo mais valioso que eu já tinha lhe dado. E isso não é porque me sentisse enciumado, não! Tinha orgulho de você e sentia como se você fosse uma parte de mim. É assim que devem ser os amantes.

Nossa vida passou como um filme numa rapidez tremenda. Resolvemos não ter filhos. A idade madura veio com brilho e carinho. Éramos ainda dois em um. A velhice veio com a singeleza de uma flor de "Amor dos Homens", que murcha sem cair as pétalas.

Um dia, quando voçê completou sessenta anos, ainda muito linda, me perguntou duas vezes a mesma coisa em meia hora. Achei estranho pois sua memória era espetacular. A partir dali tinha lapsos constantes de memória que me assustavam. Não admitia procurar médico. Achava que era apenas cansaço e assim foi piorando dia após dia. Ficava nervosa com pouca coisa e por muitas vezes brigou comigo e me chamou de pai.

Tudo ficou dezesperador mesmo quando você foi convidada a fazer uma palestra em uma escola e insistiu em aceitar. Quando estava no palco e deram-lhe o microfone olhou pra todos na platéia e em tom de confusão total, começou a gritar toda confusa.

_ Pra que isto? Quem são vocês e onde estou?

Subi correndo as escadas e tentei tirá-la dali. Mas você não me reconheceu e até me bateu. Foi preciso muita diplomacia para levá-la. Você me abraçou no carro e me chamou de pai. Chorei muito e decidi que levaria você ao médico quer quizesse ou não. Chegando em casa você não se lembrava de nada e eu agi como se nada tivesse acontecido. Chamou-me de meu amor e assim decidi ignorar o acontecido, mas não ao ponto de esquecer a idéia de levá-la ao médico.

No dia seguinte fomos ao médico. Depois de vários exames, dias depois, ficou constatado (no fundo eu ja sabia) que você estava com o Mal de Alz Heimer.

Foi uma punhalada no meu coração. Doeu mais ainda, quando o médico disse que era tarde demais para fazer alguma coisa. Receitou alguns remédios para tentar retardar os efeitos da doença mas ela já havia avançado muito. Você se perdia dentro de casa. Fugia e eu tinha que mantê-la trancada pra evitar que se machucasse ou se perdesse de mim.

Li uma centena de livros sobre esta doença. Mas quanto mais eu lia, mais ficava dezesperado. Resolvi cuidar de você pessoalmente. Fiz um curso de enfermagem para saber as atitudes corretas e não contratei ninguém. Não queria que ninguém judiasse de você. Foram cinco meses de trabalho intenso.

Quando as coisas se complicaram, já fazia quatro meses que eu descobri a sua doença. Soube que havia um médico aqui que era um verdadeiro milagre na doença e trouxe você para cá. Aqui tentamos de tudo mas não resolveu. Você chegou ao ponto de não saber respirar. Ficou na UTI por um mês e depois simplesmente morreu. Tudo o que você representa pra mim não pode acabar assim. Vou transportá-la pra nossa cidade onde você deve receber as homenagens da população. Lá mandarei fazer um túmulo em forma de casinha pra você descansar em paz. Depois deixo a cargo do mundo as homenagens e visitas a você. E sei que serão muitas. Eu não voltarei mais ali, ficarei em casa com os filmes nos quais você aparece falando e vivendo, pois a quero viva em meu coração. Vou sair daqui agora e vou comprar flores pra você, Belinha, meu único e verdadeiro amor, pela última vez.

Nilma Rosa Lima
Enviado por Nilma Rosa Lima em 11/08/2015
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