A Profissão

Vocês logo vão entender porque optei por não ter mulher e filhos. Tem relação com a minha profissão. Antes de chegar nela, é preciso informar que já passei por muitas outras. Já fui motorista de táxi, entregador de pizza, auxiliar de pedreiro, jardineiro - entre vários outros subempregos.

Durante um tempo tentei aceitar as vicissitudes dessas tarefas vis. Entretanto, depois de ser humilhado varias vezes por patrões arrogantes e de sempre ganhar uma miséria, resolvi entrar para essa profissão. Mas não foi tão fácil assim, pois eu não sabia nem que ela existia.

Meu sonho sempre foi dar uma casinha pra minha mãe e tirá-la da favela. O curioso é que quando ganhei dinheiro pra mandá-la até mesmo para bairro de luxo, ela quis ficar na favela mesmo. Comprei vários barracos, mandei derrubá-los e mandei construir uma casa bem grande pra ela. Mobiliei a casa com tudo do bom e do melhor. Televisão, som, computador, geladeira duplex, fogão de seis bocas, máquina de lavar entre outras quinquilharias modernas. Sou filho único. Não deixo nenhum parente tentar explorá-la. Nem permito que ninguém mais more na casa. Até porque, às vezes, preciso utilizar os fundos para fazer meu trabalho – é um lugar seguro.

Passei por tempos difíceis e tenho orgulho de hoje ter carro do ano e morar em apartamento de luxo. Tudo isso devo a minha profissão – que mesmo assim ainda tenho vontade de um dia largar. Mas pra isso tenho que juntar mais dinheiro.

Como falei, eu não conhecia esse ofício e foi uma mulher que me ensinou – a Samantha. Sou muito fechado e nunca me dei muito bem com mulheres. Resolvia minhas necessidades na zona mesmo; quando tinha dinheiro. Cheguei a ser noivo até o dia em que peguei a Fátima saindo de um motel com o chefe dela. Era secretária. Eu estava fazendo um bico no motel, consertando umas antenas. Muitos teriam dado porrada. Eu não, detesto violência. Não falei nada, só a evitei. Mas ela veio atrás de mim querendo explicações, cobrando o compromisso de casamento. Falei que ela tinha me chifrado, ela disse que era mentira, contei os detalhes, ela baixou a cabeça, ficou tentando dar explicações, disse que precisou dar pro patrão pra não perder o emprego. Deixei ela falar e por fim pedi a aliança de volta. Ela protestou e se esmerou nos argumentos. Não me abalei. Por fim desistiu e me devolveu o anel.

Mas eu estava falando era da Samantha. Pois é, achei estranho aquela loira bonitona me olhando no bar. Eu tinha acabado de ser demitido de um emprego de motorista particular e estava puto, pois haviam feito sacanagem comigo. Por isso eu estava num bar tomando cerveja sozinho e condenando o mundo. Samantha estava no balcão tomando uísque e não parava de me olhar. Era muito estranho, não sou bonito e ela parecia ser da alta.

Quando veio na minha direção, fiquei atônito.

- Está esperando por alguém?

- Não – respondi boquiaberto.

- Posso sentar aqui com você?

- Claro.

Pensei na possibilidade dela ser uma garota de programa. Mas era pouco provável. Primeiro porque ela não tinha jeito de puta. É fácil identificar uma puta, elas são muito óbvias. Segundo que, mesmo se fosse, eu não seria um bom alvo. A pobreza está estampada no meu rosto. É verdade que eu bebia num bairro de luxo. Pois o bar fica perto da casa que eu trabalhava, e, como já disse, acabei de ser demitido.

Continuamos conversando e logo falei da minha condição iminente de desempregado pra não haver dúvida. Ela pareceu não se importar. A bebida nos deixou um pouco alegres. Demos algumas boas risadas. Logo percebemos algo em comum. A morbidez e o asco pela humanidade. Ela se virou pra mim:

- Eu moro aqui perto.

- E daí?

- Que tal a gente dar uma chegadinha lá?

- E o que vamos fazer? Trepar e depois, você e um Cúmplice, me sedam e me arrancam um rim?

Ela riu e jogou os cabelos pra trás. “De certa forma, ela vale um rim” – pensei. Voltou-se pra mim:

- Bem que eu vi que você era esperto. Apostei nisso. Mas não se preocupe, meu negócio é outro – muito mais profissional.

Fui com Samantha. Havia riscos, sem dúvida. Mas a vida vale a pena ser vivida sem riscos?

A perfeição estava ali personificada num corpo. Nunca poderia imaginar que um dia eu estaria na cama com uma mulher daquelas.

Como se ainda precisasse, Samantha era uma exímia conhecedora da arte do coito. Quando acabou, eu mesmo teria retirado o rim se ela pedisse. Anotou o número do meu celular.

Ela sempre ligava dizendo que estava nua me esperando. Transávamos todos os dias. Às vezes passávamos o dia todo na cama. Eu estava no paraíso. Mas sabia que aquilo tinha um propósito que logo se revelaria – ela não estava comigo por meus belos olhos castanhos comuns.

Dizem que o universo conspira. E foi o que aconteceu para que eu entrasse para essa lucrativa profissão. Pois se eu não tivesse sido demitido naquele dia, certamente não conheceria Samantha e não teria entrado pro negócio. Outra coincidência foi a maneira como fui demitido. Por causa de uma mentira caprichosa da filha do doutor Eurico. Com apenas cinco anos, aquela burguesinha já conseguia tirar o emprego de alguém. Falou pro pai que me viu bebendo, coisa que nunca fiz em serviço. A pestinha não ia com minha cara e conseguiu me derrubar. Por isso quando Samantha me fez a proposta eu logo pensei na menina. Ela seria a primeira. Talvez se não fosse esse ódio pela filha do doutor, eu não teria topado o negócio. Apesar da Samantha ter preparado bem o terreno pra me convencer.

Samantha não me amava. Acho que até tinha algum gosto em trepar comigo (essa coisa animal que algumas mulheres da alta sociedade tem de trepar com gente rota e levar uns tapas), mas era óbvio que o objetivo principal era me amaciar pra que eu encarasse o serviço. Pois é difícil arranjar gente com coragem pra fazer esse tipo de trabalho. Eu não deixava de me sentir usado, mas eu já estava escaldado e, além do mais, continuávamos transando. Apesar de não ser mais todos os dias.

Mesmo com todo o ódio que eu sentia pela família do meu ex-patrão, principalmente daquela menina, não foi fácil agir. Era um facilitador saber todos os passos da pestinha, mas demorei a escolher o momento certo. Mas é como no primeiro dia em qualquer serviço; a gente fica nervoso mesmo. Decidi pelo balé. Quando a chamei, ela até me sorriu. Quando a joguei no carro, Samantha já estava com o pano molhado que lhe cobriu o rosto. A menina apagou.

O dinheiro pode pagar o remorso? No meu caso pagou. Nunca recebi tanto dinheiro na minha vida. Claro que o gostinho de vingança também ajudou. Mas confesso que não é fácil se adaptar a essa profissão. Acabei criando alguns métodos pra ajudar. Nunca quis saber o destino das crianças. Sei que existe o tráfego de órgãos ou simplesmente mandam crianças pro exterior pra adoção. Já ouvi falar até em rituais satânicos envolvendo sacrifício de crianças. Seqüestro sei que não é, pois não me exigem filhos de ricos. As pobres também servem. No início, dei preferência para as abastadas e de classe média. Pois ainda morava no morro e conhecia várias crianças filhos de amigos meus que vi crescer. Mas pegar filho de rico é mais perigoso porque são mais vigiados. O melhor mesmo é a classe média com seus pais descuidados.

Clubes e parques. Esses são os lugares que mais gosto de trabalhar. Na maioria dos clubes se vende convites. Fico sempre á distância bebendo uma cervejinha e escolhendo o alvo. Gosto de famílias com dois ou mais filhos que os pais gostem de uma birita ou que o pai pratica esportes e deixa as crianças com a mãe. Mãe que bate papo com as amigas é ainda mais fácil. Geralmente chego de manhã no clube, mas acabo agindo somente à tarde; quando já estão cansados. O melhor momento é quando a criança se afasta e os pais estão dispersos, chego perto e começo a brincar com elas – em geral gostam de mim. Quando percebo a chance, introduzo o pano na boca e saio com a criança desacordada no colo. Ninguém desconfia. É normal uma criança sair dormindo no colo do pai.

Já aconteceu de me flagrarem, mas é fácil de escapar, digo que encontrei a criança sozinha e que estou procurando os pais dela. Acabo ficando como herói.

Certa vez, eu estava saindo pela portaria do clube quando o pai do garotinho, que estava desmaiado no meu colo, viu e gritou. Cheguei a pensar que minha carreira acabaria ali. O homem correu em minha direção. Fiquei apavorado, mas na hora tive uma luz. Falei pro homem que eu era enfermeiro e que encontrei a criança desmaiada e como não vi os pais, quis levá-la para um hospital. O homem, que certamente sentia-se culpado, não teve tempo de raciocinar, pegou o filho desacordado no colo e se esqueceu de mim. Sumi num átimo.

Tenho que confessar que às vezes tenho pesadelos horríveis com as crianças que peguei. Acordo suando bicas. Por isso penso em parar. Mas preciso juntar um pouco mais de dinheiro, quem sabe montar algum negócio. Por enquanto tenho trabalhado muito, pois as encomendas não param de chegar. Estou tendo que pegar mais de uma criança por dia. Teve um Domingo que peguei três – meu recorde. Por isso estou tendo que usar a casa da minha mãe pra esconder algumas até que venham recolher.

Samantha fala que eu sou o melhor que ela já recrutou até hoje. Pode ser mentira, mas sei que sou bom no que faço e sinto até orgulho quando ela fala isso – geralmente cavalgando sobre meu pau. Possuir uma mulher como ela da uma sensação deliciosa de grandeza. Sem falar que hoje possuo mais do que sonhei e não preciso daqueles empregos desprezíveis. Quando, em outra profissão, eu poderia ter tudo isso?

Fernando Tamietti
Enviado por Fernando Tamietti em 20/06/2007
Reeditado em 21/10/2011
Código do texto: T534171
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