O SÓCIA DO CANTOR
Durante a semana inteira a emissora de rádio da cidade anunciou intermitentemente: “Não esqueça. Neste sábado, às oito horas da noite, na Praça da Matriz, grande show com o cantor Orlando Silva.”
Orlando Silva era o maior nome da música popular brasilera daqueles tempos. Ele era o “Cantor da Multidões.” Suas apresentações públicas costumavam reunir verdadeiras aglomerações que só Roberto Carlos, vinte anos mais tarde, iria igualar.
Não deu outra. Aquele sábado era aniversário de emancipação do município. No geral, já era dia de festa. Todo ano, depois que ganhara o estatus de município, a Prefeitura promovia um dia inteiro de festa, que sempre terminava com um grande show na praça da Matriz. Nessas ocasiões, era praxe trazer um artista de nome para dar encerramento ao evento com chave de ouro. Assim, no coreto da praça, em outros anos, já haviam se apresentado grandes nomes da música popular brasileira da época, como Gilberto Alves, Maurici Moura, Ataulfo Alves, Adoniram Barbosa, os Demônios da Garoa, Cascatinha e Inhana e muitos outros.
Esse ano estavam anunciando Orlando Silva. Que maravilha. Quem não queria ver o “Cantor das Multidões” cantando em sua cidade? Houve até quem ensaiasse o coro do “Carinhoso”, que todo mundo sabia ser a canção mais famosa dele, para cantar com ele. Ele sempre a cantava no fim do show, e todo mundo acompanhava:
“Vem, vem, vem, Vem sentir o calor, Dos lábios meus, `Á procura dos seus, Vem matar esta paixão, Que me devora o coração, Que só assim então, Serei feliz, bem feliz...”, era o que mais se ouviu naquela semana pela cidade.
Poucos serão os não concordem que esses são os versos mais conhecidos e cantados da música popular brasileira. Muita gente não sabe o estribilho do Hino Nacional, mas esse trecho do Carinhoso duvido que não saibam. Não há quem não os conheça e cante.
Assim, todos naquele sábado, estavam preparados para ouvir e acompanhar o Cantor das Multidões nesses e noutros versos famosos que ele popularizou. Todo mundo conhecia, por exemplo, o refrão da “Última Estrofe”.
“ Lua, vinha perto a madrugada, Quando em ânsias minha amada,
Nos meus braços desmaiou, E o beijo do pecado, No seu véu estrelejado, A luzir glorificou. Lua, hoje eu vivo tão sozinho, Ao relento, sem carinho, Na esperança mais atróz, De que cantando em noite linda, Esta ingrata volte ainda, Escutando a minha vóz.”
Essas e outras canções ganharam fama na vóz inconfundível do Orlando Silva. Quem não conhecia, por exemplo a marchinha Jardineira? “ Ó Jardineira, por que estás tão triste? Mas o que foi que te aconteceu? Foi a camélia que caiu do galho, deus dois suspiros e depois morreu...” Até hoje é execução obrigatória em todos os bailes de caraval.
Por tudo isso, naquele sábado, a praça estava entupida de gente. Dizem que havia mais de dez mil pessoas lá. A cidade tinha uns oito mil habitantes se tanto, entre homens, mulheres e crianças.Vá lá. Sempre se exagera numa coisa dessas. Pode ser que tenha vindo muita gente das cidades vizinhas. O fato é que a praça, que hoje, reconstruída e aumentada pode agasalhar, quando muito, umas duas mil pessoas, estava tão cheia, que quem mudasse o pé perdia o lugar.
Eram exatamente oito horas quando o apresentador anunciou: “ E agora, com vocês, Orlando Silva!”
E então entra correndo no palco improvisado do coreto, brilhantemente montado para a ocasião, um crioulinho de cerca de um metro e meio, de pernas tortas, vestido com smoking e tudo, inclusive com cabelos lustrados com Glostora, e começa, com todo o vapor, a cantar um samba do Ataulfo Alves. A platéia, em princípio, entre chocada e envolvida pelo samba que o crioulo mandava, aliás, muito bem, não sabia se aplaudia ou se vaiava.
Mas, de repente, alguém, lá no meio da multidão gritou: “ Mas esse aí é o Alicate. Não é o Orlando Silva porra nenhuma!”.
Não é preciso dizer o que aconteceu naquela noite. A polícia da cidade disse que nunca tinha visto uma confusão igual. Lojas foram saqueadas, bancas de jornais foram depredadas, onde houvesse um cartaz anunciando o show daquela noite, um ato de vandalismo foi registrado. Foi a noite do maior quebra-quebra que aquela cidade já registrou.
O caso foi levado à justiça. O promotor público acusou os organizadores do evento de prática de estelionato e falsidade ideológica. Segundo o ilustre causídico, o povo da cidade havia sido iludido pelos promotores do evento, fazendo um cantor desconhecido se passar pelo famoso Cantor das Multidões. Não haviam cobrado ingresso nem tido qualquer benefício financeiro com isso, mas muita gente na cidade fora prejudicada com isso. E quem havia promovido o evento tinha sido a própria prefeitura. Assim, quem tinha de pagar todos os estragos feitos pela multidão em fúria era o próprio poder público.
Mas o juíz entendeu diferente. Os organizadores do evento não haviam enganado ninguém. Na verdade, o nome do crioulinho de pernas tortas que havia subido no palco naquela noite se chamava Orlando Silva. Esse era o nome verdadeiro dele. Estava registrado em cartório. E em nenhum lugar, em nenhum cartaz, se dizia que aquele Orlando Silva era o o famoso “Cantor das Multidões”. Portanto, o Orlando Silva anunciado era o Orlando Silva apresentado. Não havia que se falar em estelionato. O caso foi arquivado. Foi apenas um probema de comunicação.
O Alicate era um neguinho bom de samba que costumava animar os barzinhos da cidade. Era pedreiro-ajulejista dos bons e nos fins de semana fazia uns bicos cantando sambas nos bailes para os quais era convidado. Esse episódio lhe valeu uma aparição em um famoso programa de televisão da época, apresentado pelo polêmico Flávio Cavalcanti. Mais tarde foi para Brasilia e dizem que fez algum sucesso na Nova Cap. Mas ele, coitado, nao tirou muito proveito disso. Morreu, uns dois anos depois, baleado por um marido ciumento que cismou que ele estava pegando a mulher dele
Durante a semana inteira a emissora de rádio da cidade anunciou intermitentemente: “Não esqueça. Neste sábado, às oito horas da noite, na Praça da Matriz, grande show com o cantor Orlando Silva.”
Orlando Silva era o maior nome da música popular brasilera daqueles tempos. Ele era o “Cantor da Multidões.” Suas apresentações públicas costumavam reunir verdadeiras aglomerações que só Roberto Carlos, vinte anos mais tarde, iria igualar.
Não deu outra. Aquele sábado era aniversário de emancipação do município. No geral, já era dia de festa. Todo ano, depois que ganhara o estatus de município, a Prefeitura promovia um dia inteiro de festa, que sempre terminava com um grande show na praça da Matriz. Nessas ocasiões, era praxe trazer um artista de nome para dar encerramento ao evento com chave de ouro. Assim, no coreto da praça, em outros anos, já haviam se apresentado grandes nomes da música popular brasileira da época, como Gilberto Alves, Maurici Moura, Ataulfo Alves, Adoniram Barbosa, os Demônios da Garoa, Cascatinha e Inhana e muitos outros.
Esse ano estavam anunciando Orlando Silva. Que maravilha. Quem não queria ver o “Cantor das Multidões” cantando em sua cidade? Houve até quem ensaiasse o coro do “Carinhoso”, que todo mundo sabia ser a canção mais famosa dele, para cantar com ele. Ele sempre a cantava no fim do show, e todo mundo acompanhava:
“Vem, vem, vem, Vem sentir o calor, Dos lábios meus, `Á procura dos seus, Vem matar esta paixão, Que me devora o coração, Que só assim então, Serei feliz, bem feliz...”, era o que mais se ouviu naquela semana pela cidade.
Poucos serão os não concordem que esses são os versos mais conhecidos e cantados da música popular brasileira. Muita gente não sabe o estribilho do Hino Nacional, mas esse trecho do Carinhoso duvido que não saibam. Não há quem não os conheça e cante.
Assim, todos naquele sábado, estavam preparados para ouvir e acompanhar o Cantor das Multidões nesses e noutros versos famosos que ele popularizou. Todo mundo conhecia, por exemplo, o refrão da “Última Estrofe”.
“ Lua, vinha perto a madrugada, Quando em ânsias minha amada,
Nos meus braços desmaiou, E o beijo do pecado, No seu véu estrelejado, A luzir glorificou. Lua, hoje eu vivo tão sozinho, Ao relento, sem carinho, Na esperança mais atróz, De que cantando em noite linda, Esta ingrata volte ainda, Escutando a minha vóz.”
Essas e outras canções ganharam fama na vóz inconfundível do Orlando Silva. Quem não conhecia, por exemplo a marchinha Jardineira? “ Ó Jardineira, por que estás tão triste? Mas o que foi que te aconteceu? Foi a camélia que caiu do galho, deus dois suspiros e depois morreu...” Até hoje é execução obrigatória em todos os bailes de caraval.
Por tudo isso, naquele sábado, a praça estava entupida de gente. Dizem que havia mais de dez mil pessoas lá. A cidade tinha uns oito mil habitantes se tanto, entre homens, mulheres e crianças.Vá lá. Sempre se exagera numa coisa dessas. Pode ser que tenha vindo muita gente das cidades vizinhas. O fato é que a praça, que hoje, reconstruída e aumentada pode agasalhar, quando muito, umas duas mil pessoas, estava tão cheia, que quem mudasse o pé perdia o lugar.
Eram exatamente oito horas quando o apresentador anunciou: “ E agora, com vocês, Orlando Silva!”
E então entra correndo no palco improvisado do coreto, brilhantemente montado para a ocasião, um crioulinho de cerca de um metro e meio, de pernas tortas, vestido com smoking e tudo, inclusive com cabelos lustrados com Glostora, e começa, com todo o vapor, a cantar um samba do Ataulfo Alves. A platéia, em princípio, entre chocada e envolvida pelo samba que o crioulo mandava, aliás, muito bem, não sabia se aplaudia ou se vaiava.
Mas, de repente, alguém, lá no meio da multidão gritou: “ Mas esse aí é o Alicate. Não é o Orlando Silva porra nenhuma!”.
Não é preciso dizer o que aconteceu naquela noite. A polícia da cidade disse que nunca tinha visto uma confusão igual. Lojas foram saqueadas, bancas de jornais foram depredadas, onde houvesse um cartaz anunciando o show daquela noite, um ato de vandalismo foi registrado. Foi a noite do maior quebra-quebra que aquela cidade já registrou.
O caso foi levado à justiça. O promotor público acusou os organizadores do evento de prática de estelionato e falsidade ideológica. Segundo o ilustre causídico, o povo da cidade havia sido iludido pelos promotores do evento, fazendo um cantor desconhecido se passar pelo famoso Cantor das Multidões. Não haviam cobrado ingresso nem tido qualquer benefício financeiro com isso, mas muita gente na cidade fora prejudicada com isso. E quem havia promovido o evento tinha sido a própria prefeitura. Assim, quem tinha de pagar todos os estragos feitos pela multidão em fúria era o próprio poder público.
Mas o juíz entendeu diferente. Os organizadores do evento não haviam enganado ninguém. Na verdade, o nome do crioulinho de pernas tortas que havia subido no palco naquela noite se chamava Orlando Silva. Esse era o nome verdadeiro dele. Estava registrado em cartório. E em nenhum lugar, em nenhum cartaz, se dizia que aquele Orlando Silva era o o famoso “Cantor das Multidões”. Portanto, o Orlando Silva anunciado era o Orlando Silva apresentado. Não havia que se falar em estelionato. O caso foi arquivado. Foi apenas um probema de comunicação.
O Alicate era um neguinho bom de samba que costumava animar os barzinhos da cidade. Era pedreiro-ajulejista dos bons e nos fins de semana fazia uns bicos cantando sambas nos bailes para os quais era convidado. Esse episódio lhe valeu uma aparição em um famoso programa de televisão da época, apresentado pelo polêmico Flávio Cavalcanti. Mais tarde foi para Brasilia e dizem que fez algum sucesso na Nova Cap. Mas ele, coitado, nao tirou muito proveito disso. Morreu, uns dois anos depois, baleado por um marido ciumento que cismou que ele estava pegando a mulher dele