João Empó

CONTOS que não ganharam concurso, mas também não foram lidos por comissão julgadora. (Escritos entre 1980-84: os originais estão datilografados)

EM PÓ

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Preso ao visgo do denso cipoal da mata humana em contínua efervescência vivia João de inventar coisas úteis e inúteis, às vezes para satisfazer algum interesse imediato, outras para não deixar escoar vazio o tempo lento e irritante. Os amigos implicavam.

- Faça alguma coisa que dê dinheiro, homem!

- Dinheiro? ... Não tem valor algum! ... Veja as coisas importantes, ninguém valoriza... Olha, isto aqui é um extrator de bunda de vagalume... Para economizar energia elétrica.

- Hum! Interessante!

- Este desenho, veja, é um projeto de televisor para quem gosta de ler.

- Parece um livro!

- É... Quando for mudar de canal, é só passar a página!

- Que é isto, João?

- Muito importante, muito importante... Vai facilitar a vida de todos que necessitam ler má caligrafia.

- Isto é borracha pura, não entendo.

- Não, não, isto é um papel elástico... Quando a gente necessitar entender um garrancho, é só esticar aqui, esticar ali, até dar forma inteligível à letra.

As pessoas viviam mexendo em suas gavetas.

- Ora, João, isto já foi inventado. Isto é uma lapiseira! Você vive é perdendo tempo!

- Engana-se, meu amigo, isto é o protótipo da minha, da minha lapiseira.

- E em que ela é diferente?

- O sujeito escreve,escreve, até acabar o grafite... Já notou quanto coisa a gente escreve e depois joga fora?

- Já.

- Pois, com esta lapiseira, adeus desperdício, adeus lixo, adeus borracha! Quando não precisar mais do que escreveu, é só apertar este pontinho, passa a caneta por cima do que está escrito e ela vai sugando a escrita velha, formando o grafite de novo. Como pode perceber, tem outra utilidade, errou, é só apertar o botãozinho de sugar, desmanchar, apertar o de escrever, e pronto!

- Realmente, se funcionar, vai ser uma mão na roda.

João, o inventor, tinha uma roda de amigos muito grande. Sua oficina estava sempre cheia de pessoas que precisavam ora de uma ferramenta, ora de esperar a hora de jantar divertidamente. João era conversador e ocupava os ouvidos com humor. Colecionava absurdos da história. Dizia que iria arranjar um jeito de fundi-los em chaveirinhos para vender nas feiras de artesanato. E os contava como se fossem piadas.

- Sabe aquela do sujeito que foi desenterrado, vestido de gala, colocado em seu trono...

- Esta é velha! Foi julgado e condenado à morte.

- Só isto?

- Foi só isto que você contou, João.

- Não, tem mais... Um acusava, outro respondia, e ele foi condenado à morte, então o jogaram no Rio... É, perdeu a graça, né? Mas... Sabia que existiam lugares no mundo onde os maridos podiam internar suas mulheres nos hospícios, sem mais nem menos?

- Pô, ia ser joia! Mulher perturbou, põe no camburão e joga no hospício.

- Você parece humorista de televisão, João. Por que não arranja emprego disto?

- Ah, esta turma não está com nada... Tem um que me lembra um sujeito, um desses grandes homens, que mandou fechar todos os colégios de seu país, exceto em doze cidades.

- Uai, pra quê?

- Ele falou que era para acabar com a mania dos pobres de instruírem seus filhos, o que os desviava do comércio e da guerra.

O pessoal ria às escancaras.

- Sabe como ele chama a pena de morte?

- Pena de urubu?

- Ele chamava de castigo breve

Todos riam de morrer

- Esta não, esta é demais!

- E o pior, teve uma época em que se ensinava aos homens terem horror às mulheres.

- Quem inventou isto? O pai das bichas?

- E dos trabalhadores? Sabia que em 1361 eram queimados a ferro quente se abandonassem seus patrões antes do prazo contratado?

- Ah, ah, ah, vai ver que foi daí que nasceu a expressão “levar ferro”!

Ah, ah, ah… Ah, ah, ah. A turma gozava de tanto gargalhar. Às vezes, passavam-se horas contando absurdos, quando arranjava até casos recentes, como a história do casal de espiões que manteve, durante dez anos, relações na biblioteca, furtivas, ela só levantando um pouco a saia. Quando foram presos e julgados, o espião macho desmaiou de espanto no Tribunal: o espião fêmea era homem!

Ocasionalmente, João contava um absurdo mais atual, com certos detalhes que fazia a turma se calar olhando para a porta. Tinha até vez de algum sair ao portão para dar uma olhada no ar das duas esquinas. João se desconcertava, não gostava de ser indelicado. Se os amigos ficavam assim irrequietos, mudava logo de assunto e um jeito de fazê-los rir novamente.

Muitos estudantes vinham lhe pedir orientação para classificar insetos, saber de uns prefixos e sufixos gregos, latinos, guaranis, perguntar sobre a botânica das palavras, como dizia.

- Botânica, João?

-É. Você pega uma semente, uma raiz, planta e nasce uma palavra, faz um enxerto de duas e nasce outra...

Palavra que João entendia de tudo. Matemática, línguas estrangeiras, cultura popular... Tudo entendia. Não que entendesse, fazia perguntas e perguntas que davam a parecer conhecer de tudo.

Um dia, coitado, aconteceu-lhe uma tragédia. Perdeu a família, as coisas, os livros, os insetos, tudo, tudo, em um incêndio. Ele próprio, no afã de salvar alguém, queimou-se profundamente. Com grande dor, conseguiu salvar-se. Desgostoso, passou a viver de chorar. Durante anos, só fazia olhar os escombros e chorar. Não deixou que reconstruíssem sua casa. Com o tempo as lágrimas secaram, o choro foi encurtando a virar pequenos soluços espaçados. Pensaram que emudecera. Os amigos insistiam para que reiniciasse sua vida e ele nada respondia. Passaram-se quase uns cinco anos e já o esqueciam, quando:

- João, reanime-se cara! A gente ajuda! De tudo que você fazia, de que mais gostava?

- Classincé!

- Classincé?

- É!

- O João falou! O João está falando!

- Sei, estamos ouvindo... O que ele está falando?

- Palavras sem sentido, e daí?

João ficou vermelho.

- Classincé! Classincé! Classincé! - Gesticulava.

- Parece que quer falar com os braços, fazer mímica.

- Quê adianta? Não completa nenhum movimento!

- Classincé! Achei! - Gritou eufórico alguém - Classincé, classificar insetos!

- É João?

- É!

Um lhe trouxe a tábua de classificação dos insetos, outro trouxe frascos, alguém agulhinhas e cortiça. Proveram-no de tudo. O inventor tomou a tabela nas mãos e foi passando os dedos, ocasionalmente falando algo.

- Coleopat... Himenopt... Arac...

- Vai melhorar. Está percebendo as coisas... Tem apenas uma dificuldade para falar.

E realmente começou a apresentar uma melhora progressiva, assentindo em treinar a caligrafia, a fazer rabiscos. Um dia, um esboço chamou a atenção.

- Quê é isto, João?

- Calçapato. Estoinvêcalçapato.

Pronto. João se reencontrara. Estava de novo a querer inventar. Seus amigos com atenção redobrada não o deixavam, instigando-o a melhorar.

- Vamos, invente aí alguma coisa!

O inventor pegava o lápis, o papel, rabiscava, rabiscava e mostrava.

- João Doido, o que é isto?

- Maquinovelinha.

- Como? Mostre no desenho.

João se irritava e com gestos bruscos passava o lápis por sobre o desenho.

- Maqui... Novê... Linha!... Maqui... Novê... Linha!

Ficavam intrigados, às vezes levavam dias para decifrar o que era, até que alguém descobria.

- Vejam! Vejam só! Esta parte do desenho é um parte de uma máquina. Esta parte aqui parece ser um novelo cortado em pedaços. E estes rabiscos todos, linha! Maqui, nove, linha, máquina de fazer novelos de linha! - Depois explicava, calmo: - bem, eu creio, né?

Era uma brincadeira de adivinhação. João repetia, repetia mímicas desconcertantes, até que alguém descobria. O que encabulava mesmo era João sair para caçar insetos e nunca trazer nada. Nem mostrava a ninguém coleção alguma. No início quando João saía de casa ia sempre alguém com ele, mas depois houve o cansaço e como não aprontasse nada de reprovável João podia sair sozinho, era de boa índole.

- Aonde vai, João?

- Cacincé!

Lá ia ele caçar insetos. Um dia pediu agulhas, foi um susto.

- Quegú! Quegú! - E fincava o indicador endurecido no braço do outro.

- Uai, João, as agulhas acabaram? Nunca vimos você trazer inseto algum!

- Tá chê! Tá chê! - Mostrava com os dedos - Tá duvimi? Tá duvimi? – E levou-os para ver os insetos.

A cortiça cheinha de agulhinhas espetadas, patas, pedaços de asas de borboleta, palpos, antenas, cabecinhas de insetos. Pediram explicações assustados. João não se fez de rogado e mostrou com a tranquilidade de quem conhecesse.

- Pat!

- Pata!

- Ás!

- Asa!

- Ant! - Eram as antenas

Cabês! ... Palp! ... Tó! ... Abdô! ...

Seus amigos não manifestaram por fora o espanto e, por dentro, combinavam-se levá-lo a um psiquiatra. Explicaram ao douto senhor o que se passava e se pôs em uma uma longa tentativa de conversa. Horas que passavam. O médico deixou o paciente e veio dar o veredito:

- Impossível ajudá-lo, não consigo entender o que fala, só fragmentos de palavras!

- E os sonhos, doutor, conseguiria interpretar algum?

- Ah! Os sonhos. Vou ver se consigo dele extrair alguns.

O tempo passa lento e impaciente, até que o médico abre a porta e vem em direção aos acompanhantes ansiosos. Vinha cabisbaixo, segurando algo, com cuidado, em sua mão direita, fechada.

- E aí, doutor?

- É mesmo impossível... Consegui lhe extrair alguns sonhos - tomou a mão de um deles colocou sua mão em punho fechado sobre ela, como uma metade de ampulheta, e abrindo um buraquinho com o mindinho, completou enfático:

- Ele sonha em pó!

Gilberto Profeta
Enviado por Gilberto Profeta em 07/08/2015
Reeditado em 07/08/2015
Código do texto: T5338658
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