Fatos Cotidianos 19 – Vítimas e culpados
[Primeiro ato: os cordeiros, as ovelhas e os elefantes.]
Gabriel tinha 13 anos e vendia pinos de cocaína numa esquina de uma rua pouco movimentada durante a madrugada. O trabalho lhe garantia, num dia ruim, R$300.
Ele era o mais velho dos três filhos de D. Josefina com Seu Sebastião. A matriarca tinha morrido poucos anos atrás de câncer, enquanto Seu Sebastião teve o cérebro esmagado num acidente na pedreira que trabalhava. Coube a D. Véva, mãe de D. Josefina, a tarefa de garantir que as crianças chegariam a fase adulta sãs e salvas.
D. Véva era uma senhora baixinha, fraquinha, magrinha, definhada pelo tempo e o contato diário com cândida durante longos 50, ininterruptos, anos. Na maior parte do tempo ela fingia não saber quem naquela casa ganhava o suficiente para manter todas as bocas alimentadas, ou da onde tinha vindo a TV fininha da sala. Mas sempre que via uma notícia sobre tráfico de drogas na TV fininha dizia, olhando indignada, para o teto: “Isso não esta certo!” Com medo de ver seu menino na jaulinha de um camburão, e responsável por todos os erros da humanidade, segundo o apresentador de um programa policial cretino vespertino, ela rezava todo dia um Pai Nosso e uma Ave Maria para o neto, além de uma prece para São Benedito e uma novena, que começava sempre que outra acabava.
Para Gabriel não tinha muito mais o que ele podia fazer para ganhar algum dinheiro com o que aprendia na escola. Tirando os clientes, que ficavam um pouco mais agressivos e loucos com o passar da noite, e o chefe, que estava sempre ostentando alguma arma grande e amedrontadora no lugar mais visível possível, não era tão ruim. Ele só tinha que ficar parado numa esquina, recolher o dinheiro, ir até o boeiro, pegar os pinos, e entregar para quem tivesse dado a grana. Além do que, respaldado pela parceria do chefe com a polícia, podia fumar o quanto de maconha quisesse durante seu turno. Cheirar era proibido, o que para ele, que não cheirava, não mudava nada.
O que mudava tudo, para D. Josefina, eram os comentários da vizinhança, liderada pela beata D. Tereza. Sua principal ocupação era apontar o dedo para todos que não andavam na linha por ali. “O filho/marido/irmão/qualquer um de quem vai estar nas páginas policias do jornal amanhã?” Perguntava ela para o padeiro todo dia no fim da tarde. Sempre alto o suficiente para alguém ouvir e se sentir atingido. Havia quem dissesse que tudo que ela queria era manter a família dela afastada daquela sujeira. Para outros o que ela queria mesmo era mostrar, a todo custo, que era diferente da gentinha que cercava sua casa. Fato era que seu marido, Seu Anastácio, era um consumidor, dos bons, do produto oferecido por Gabriel.
[Segundo ato: numa tarde furtiva de primavera...]
Completamente fora de si e enfurecida, D. Tereza saiu de casa gritando que sabia quem era o responsável por aquele mal que tinha se manifestado em seu lar. “Tá aqui! A prova de que aquele bastardinho que mora logo ali é o culpado por tudo que esta acontecendo!” Com uma mão ela apontava para a casa de D. Véva, com a outra segurava um pino sem nenhum pó dentro. Atrás dela vinha Seu Anastácio, que desconcertadamente pediu para um amigo do bar levar a garota de menos de 20 anos que o acompanhava até o terminal de ônibus mais próximo. “Tenho certeza que se não fosse por causa desta porcaria de droga você não tinha coragem de fazer isso comigo!” Ela jogou o pedacinho de plástico no chão e pisou em cima, com ódio, freneticamente. Depois se sentou no meio da rua e disparou a chorar e gritar: “por que Deus?”, desesperadamente.
Diante de tamanho alvoroço, as pessoas começaram a sair na rua e se aglomerar para ver o que estava acontecendo. Sem saber para onde correr, Seu Anastácio voltou para dentro de casa. Se sentindo sem condições morais para dialogar com a descontrolada D. Tereza, D. Véva fez o mesmo. “Não adianta a Senhora tentar sair de fininho não! É do traficante filho da puta do seu neto que estou falando! Foi ele que colocou este mal dentro da minha casa!” Sentindo uma angustia corroer seu estômago e uma culpa tomar conta da sua alma, D. Véva passou pela porta da frente com os olhos lacrimejando. Voltaria a trabalhar em casa de família, passar roupas a noite, cozinhar no bar no fim de semana, o que fosse para Gabriel não precisar se envolver mais com aquilo.
Ainda um tanto quanto sem condições de reagir, D. Tereza viu as luzes de um carro de polícia estacionando atrás da multidão para checar a razão de tamanha movimentação. Um corredor se abriu e dois policiais atravessaram o povo para acudir aquela mulher caída no chão. Ela soluçava enquanto litros de água saiam de seus olhos e quilos de catarro vazavam do seu nariz. Um dos policiais ofereceu um lenço para ela limpar a cara, o outro a ajudou a se levantar. Enquanto os três se arrastavam lentamente em direção a viatura Gabriel dobrou a esquina dançando ao som dos fones de ouvido. Entre um gingado e outro seu olhar cruzou com o de D. Tereza. Sem pestanejar, e em alto e bom som, ela apontou o dedo e gritou: “Ele é a batata podre policiais! Prendam ele! Prendem ele!” Gabriel não conseguiu entender nem o que ela disse nem o que estava acontecendo, mas tomado pela máxima do quem deve teme, se virou e começou a correr assim que percebeu os policiais vindo em sua direção. Foram dois quarteirões e uma curva errada para a direita até Gabriel ser encurralado. Ele só queria jogar os pinos que estavam no bolso dele para longe, mas os policias não pensaram em nada e abateram ele com dois tiros.