Sonho incompleto
É a realidade. Mas nem tudo é real na nossa passagem pelo universo. Por vezes o sonho parece-nos realidade. A realidade por vezes parece-nos um sonho.
Por vezes sonhamos cada coisa...
Uma noite fui esperar o meu rapaz e alguns colegas numa das escapadelas nocturnas que eles tanto apreciam.
Tinha combinado ir esperá-los ao Largo de Camões, mas como ainda era um pouco antes da hora previamente estabelecida, ao percorrer a rua da escola Politécnica, vislumbrei um lugar de estacionamento, por coincidência junto do Pavilhão Chinês, um milagre às sextas-feiras à noite por aquelas banda do Bairro Alto.
Por ali fiquei dentro do carro, cerca de uma hora, ouvindo rádio e observando o estugar dos jovens de um lado para o outro entre risos e uns tragos de cerveja.
O local fixou-se de tal forma na minha mente que uma destas noites sonhei com o local e como sempre em todas as fantasias, com alguém que faz parte da nossa convivência ou algo parecido.
Os olhos arredondaram-se-lhe. Agora já não se parece tanto com aquela que entrava no Pavilhão Chinês. Bar actualmente na moda da vida nocturna Lisboeta.
Há algo de Paula nela. Na maneira como revira o canto da boca um pouco divertida e na forma como me diz ainda olhando para a janela: “desde os meus catorze anos que os homens são para mim o meu desporto.” Vê-se pela tibieza da carne dos seus braços, a suavidade da textura das suas pernas.
Sinto-as quando as olho, elásticas, mas tenras como a carne de um animal só alimentado a prazer. “Na minha primeira vez tive que sair pela janela da cave que dava para a Almirante de Reis.”
Ri-se como uma menina de catorze anos, mostrando os dentes brancos que rapidamente oculta por timidez tardia. Está finalmente noite lá fora.
A súbita agitação provocada pela passagem do autocarro sobre o alcatrão molhado acompanha a porta que se abre de rompante.
Alguém agitado entra no bar praticamente vazio e fica a olhar para as minhas costas. Sustento o olhar até que um arrepio me percorre a nuca, forçando-me a virar.
A cara de quem entrou, está ligeiramente oculta na sombra, causada por qualquer estranho efeito que me escapa. Fico ali a olhar para ele, este homem alto, por baixo de uma gabardina bogartiana.
“Sim?” Agora a cara sorri e sai da sombra, “Janeca?!”
O que faz aqui o “Janas” que conheci nas “Baútas”?
Está mais alto... e largo. Estranho, só se passaram seis meses.
Januário contorna a coluna que está entre a porta e a mesa e no mesmo movimento senta-se entre mim e a jovem mulher.
“Estou à rasca, percebes?” Diz-me muito perto da cara ainda com aquele sorriso apalhaçado.
Decresceu. Devia ser da sombra. “Lembras os longos telefonemas para Lisboa com uma tipa de Tomar?”
Pára e fica à espera como quem acabou de contar uma anedota e ninguém se riu.
“Vagamente...” De onde terá surgido a terceira cadeira? A rapariga olha os dois com um ar trocista. “Deixou-me... a ISABEL, diz que não tem a certeza... que não que ir para cama comigo!”
Mas pareceu-me ouvir outro nome, apesar da boca do Januário ter sido rodeada pelas letras I-S-A-B-E-L quando pronunciou o nome da dita.
”Está a dar comigo em doido! Ela vai telefonar...” O sorriso palerma não lhe sai da cara. Estava capaz de o esbofetear. O meu telemóvel toca.
“ É ela. Atende que tu já a conheces bem e talvez a convenças.”
Não, claro que não conheço ninguém de Tomar.
O sorriso e a campainha do telemóvel incomodam-me quase à náusea.
A luz que ilumina o bar é fraca, no máximo 25 Watts a pingarem sobre mesa.
Atendo a medo. “Está! João?” A voz rasga barreiras talvez impostas por mim, sem intenção possivelmente. “Isabel... como sabias que estava aqui?”
A voz dela aquece-me uma parte escura e fria algures entre a segunda e a terceira costela. “A tua voz João... é sempre tão doce. Sabes que ao fim de tantos anos continuo apaixonada por ela?” “Guardei um pouquinho numa caixa e quando me sinto só, liberto uma pequena sílaba que aspiro lentamente... já tenho poucas, por isso se não te importas vou guardar todas as frases que disseres a esse telefone.”
Um silêncio. “Com o Januário... é difícil... parece um pouco, como nós naquela última vez nos Açores.”
Fico confuso, da sombra estranha que agora cobre outra vez, a atónita cara do ”Janeca“ … este telefonema… tudo me confunde.
Mas, de uma coisa tenho a certeza: com a Isabel, só estive em Lisboa nos anos que a coisa durou com o Januário. “ Lembraste da lagoa?”
Não estive lá e agora faço memória e lembro-me do cinzento do mar, os seixos muito brancos e dos lagartos pretos de língua vermelha.
Dos cabelos dela ao vento junto ao farol dos Capelinhos. Nele, consigo cheirar o mar e tudo se torna cinzento.
Lentamente, percebo-me a emergir do colchão no qual estive embebido durante um tempo incomensurável.
Os dentes doem-me. Provavelmente estive um longo período de maxila fortemente fechada.
O sonho desvanece-se lentamente, substituído por uma enraizada mágoa, cocktail de sabores conhecidos.
Não repúdio a mágoa. Somos velhos conhecidos, e quando me surge de vez em vez, sorrio-lhe e percebo que o meu mundo é incompleto sem esta companheira de ilusão.
A mágoa, tal como a memória de Isabel, propagavam-se através do Oceano calmo do sonho.
Uma tempestade antiga que afundou barcos escavou furnas em encostas, onde o seu eco ainda se repete nas plácidas manhãs de Junho. Deu voltas ao globo da minha consciência amansando-a e ao tempo com o seu buril uniformizador.
Tempestades tão fortes não deixam de existir.
Mantêm-se como impressões digitais e criam o reticulado labiríntico da irracionalidade da alma.
Esta tempestade velha afaga ainda as margens da minha consciência como uma onda mansa pulsada do centro do imenso Oceano íntimo.
Está sempre lá, mas no ruído da vida acordada, o seu sinal perde-se.
Durante a placidez lisa e cinzenta do sono a mágoa volta como um arrepio sobre o mar aveludado em dia de nevoeiro quando sopra um farrapo de vento perdido.
A boca sabe-me a tabaco. A pele cheira a tabaco.
Não devia ter fumado tanto ontem.
Sempre o tabaco...