Lágrima

O sol estava forte no dia em que conheci Amanda, ela sorria, toda alegre, ao encontrar sua velha turma. Eu saia com eles pela primeira vez. E de cara, aquela garota me encantou. A turma, aquele dia, era composta por três meninos, sendo um deles o ex-namorado de Amanda, Pedro. Também haviam algumas meninas. Além de Pedro, que me chamara para o encontro, tinha interesses parecidos com um ou outro. Segundo ele, todos gostavam das mesmas coisas ali: música, conversa e tereré. A erva e o violão passavam de mão em mão.

Logo, chegou minha vez de tocar uma música. Apesar de tocar violão clássico há cinco anos, nunca havia tocado para amigos. Treinava muito e tocava em alguns recitais da escola de música, mas eram sempre coisas pequenas, só para familiares. Olhei em volta, enquanto ajeitava o violão sobre a perna esquerda. Senti um burburinho, todos ali tocavam com o instrumento na perna direita. Era o modo mais descolado, mas como era a primeira vez, preferi não arriscar.

– Não sei o que tocar. – peguei-me dizendo em voz alta.

– Toca algo que você goste – Amanda disse, olhando agora para mim com interesse na escolha. Os olhos negros dela simplesmente me desconcertavam.

Respirei fundo e peguei a palheta da carteira. Olhei para o objeto atentamente. Era uma palheta normal, mas de madeira. Uma vez escolhida a música, coloquei a palheta sobre a perna direita. Comecei, então, a dedilhar uma música de Tárrega. A música chamava-se Lágrima. Aquela música mexia comigo, ela ia e vinha de um jeito que acalmava o peito de quem a ouvisse. Era a música que meu pai havia me ensinado, e era a mesma que me lembrava dos tempos que havíamos passado juntos.

– Como se chama essa música? – perguntou Pedro assim que terminei a música.

– Lágrima. – eu disse.

– Ela é linda! – exclamou Amanda, com um sorriso sincero e olhos cheios d’água. Naquele momento me apaixonei por ela.

– Eu gosto bastante – disse eu, tentando sorrir de maneira pouco boba, sem conseguir.

– Podia se chamar “Silêncio” – disse, sorrindo, Pedro – todos aqui calaram-se pra ouvir você tocar.

Eu ri. Peguei a guampa de tereré e comecei a sorver o mate. Passei o violão para o próximo que começou a tocar uma mais animada. Todos tocavam e cantavam. O violão não chegou voltar às minhas mãos.

– Gostei do seu cabelo. – disse Amanda ao sentar-se do meu lado.

Diferente do cabelo negro e liso dela, o meu era castanho claro (ou loiro escuro, nunca soube diferenciar) e cacheado. O meu chegava ao meio das costas, o dela mal passava dos ombros.

– O seu também é lindo – acredito que meu rosto rubro adicionou um caráter de honestidade e ela sorriu agradecendo.

– Adorei sua música, de verdade. Já toca violão há muito tempo?

– Uns cinco anos – eu disse – e você? Toca também?

– Não, eu venho pelo tereré e pelas risadas. – ela disse – gostei de sua palheta. Ela parece de madeira.

– Sim, é de madeira. Esse tipo gasta mais rápido, mas gosto do som que ela produz, é mais delicado. Foi um presente de meu pai enquanto estava vivo – deixei na mão dela a palheta e ela olhava com atenção – pode ficar com ela, se quiser.

– Posso? – os olhos dela brilharam. Arrancaria o coração do peito e colocaria em suas mãos se ela pedisse daquele jeito. Mas logo pareceu se arrepender e quis me devolver – mas seu pai te deu.

– Eu tenho outras – acalmei – além do mais, acredito que meu pai gostaria que eu desse ela a você.

Ela sorriu e apertou a palheta contra o peito em um agradecimento desajeitado. Todos riram. Foi assim até o sol se pôr: música, conversa e tereré. Logo, os meninos que trouxeram o mate levantaram-se para ir embora, e assim todos nós fomos.

Minha casa ficava próxima à casa de Amanda, a de Pedro um pouco além. Resolvemos, os três, irmos juntos. Na primeira parada, na casa de Amanda, esperamos enquanto ela corria para dentro da casa e trazia sua cachorrinha, uma Pug chamada Pulga. Não pude ficar muito, mas prometi voltar para conversar mais com ela. Seguimos, então, Pedro e eu.

– Parece que vocês se deram bem! – disse Pedro.

– Quem? Amanda e eu? – “será que ele teria notado meus sentimentos tão rapidamente?”, pensei.

– Sim, vocês parecem se conhecer há um bom tempo.

– Também senti isso. É legal esse sentimento, não acha? Você mal conhecer a pessoa e sente que já pode compartilhar com ela bons momentos, como se fossem amigos de tempos atrás.

Pedro olhou-me atentamente, pensando, e acenou em concordância.

– Mas acredito que a Amanda facilite isso, ela é muito simpática – disse eu, tentando controlar os elogios que queria fazer àquela linda moça – Vocês se conhecem faz tempo?

– Um pouco. Ela não te contou? – disse ele, e riu sem jeito quando viu que eu olhava com curiosidade – É que, ela e eu, namoramos por um tempo. Pra ser correto, por três anos.

– Nossa – eu não sabia o que dizer. Foi um misto de inveja e ciúmes, mais inveja.

– É, mas não chegamos a brigar nem nada – Pedro tentou explicar – só que vimos que éramos mais como irmãos do que amantes. Faltava alguma coisa, eu sentia e ela também. Continuamos amigos, e temos os mesmos amigos, como você pode notar.

Chegamos à minha casa e desculpei-me pela indiscrição. Ele deu de ombros e disse que não tinha problemas. Deixamos combinado que iríamos no próximo sábado tomar o tereré com a mesma turma, e assim nos despedimos.

Pedro eu tínhamos nos conhecido através de nosso emprego. Ambos trabalhávamos na mesma empresa. Eu cuidava do faturamento e ele era vendedor. Nos conhecíamos há pouco mais de um mês, quando comecei a trabalhar ali. Logo, ele veio conversar comigo. Provavelmente conversamos não mais que três vezes até àquela tarde quando conheci Amanda. Todavia, depois daquele dia, conversávamos todos os dias. Aos poucos eu conseguia uma informação ou outra sobre ela. Não era um assunto que ele gostava de falar muito, ainda assim, sentia-me confiante na extração de informações. Consegui descobrir que ela era filha única. Comia de tudo (“uma draga” nas palavras de Pedro). Era caseira. Gostava de rock e músicas pop. Trabalhava na empresa do pai, mas tinha sido modelo “de pés” na adolescência. E o mais importante, estava solteira. Toda aquela informação só tornou ainda mais fácil a conversa no outro sábado.

– Fiquei sabendo que você trabalha com seu pai. – disse enquanto os garotos tocavam e se esgoelavam cantando uma música do Nirvana.

– Sim, ele tem um escritório de contabilidade. Ajudo com telefonemas e contratos. Mas, apenas até ter a resposta de uma entrevista de emprego, se conseguir me mudo para Curitiba.

– Nossa, que bacana. E quando terá a resposta? – confesso que não era o assunto que eu queria ter escolhido. Olhava atentamente os pés de Amanda, eram lindos. Nunca tive tara em pés e continuava não tendo, mas, aqueles pés eram perfeitos. Todavia, saber que ela poderia se mudar dali fez-me pensar que a pequena cidade, do interior do Paraná, ia perder algumas de suas cores com sua mudança.

– Já era para terem respondido, acho que não consegui – ela deu um riso nervoso e ficamos um tempo em silêncio.

– Ei, vou comprar um sorvete, vocês querem? – disse Pedro chegando onde Amanda e eu estávamos.

– Limão – dissemos ao mesmo tempo. Olhei para ela e tudo que pude fazer foi sorrir. Ela desfez a cara preocupada e riu comigo. Pedro, então, me chamou para ir junto buscar os sorvetes. Amanda ofereceu-se para ir junto. Não consegui compreender na hora, mas pareceu que Pedro não gostou. Lembrei que tinham sido namorados, logo, conclui que algo ainda tinha ficado, e por mais que fosse comum estarem juntos, não parecia ser legal estarem o tempo todo juntos. Ainda assim, fomos, os três.

Música, conversa e tereré. Todos os sábados, eu podia ver Amanda e isso me deixava cada vez mais contente. Contava os minutos para nosso encontro, e assustava-me cada vez que via mais um sábado acabando. Nossa amizade crescia, e com ela minha admiração por aquela menina desprendida. Não demorou até que começássemos a encontrar durante dias da semana. Às vezes ela passava na empresa, outras eu passava em sua casa após o serviço. Foi na casa dela, após pouco mais de um mês de amizade que Amanda me chamou para seu quarto, ela queria me mostrar algo. Sentei-me na cama e esperei enquanto ela mexia em sua caixa de joias.

– Eu fiz um colar, queria que você colocasse em mim. Fará me lembrar de você – ela disse sentando ao meu lado com a mão fechada. Aos poucos abriu a mão. Ela havia feito um pequeno furo na parte mais grossa da palheta que eu havia lhe dado. No furo, um barbante preto. Ela se virou de costas. Sentada na minha frente, puxou os cabelos pretos para o lado esquerdo e me deixou ver seu pescoço. Coloquei as duas mãos à frente dela e com cuidado encaixei o fecho. Ela se virou e mostrou-me como havia ficado. A palheta, apontando para baixo, contrastou perfeitamente com a cor clara de sua pele.

– Ficou linda em você – eu disse.

– Mas, não ache que te chamei aqui só pra isso – ela sorriu e meu coração acelerou como o de quem foge da morte por centímetros, mas, diferente pois eu desejava o que fazia meu coração bater. Amanda tirou outro barbante preto, como o que estava em seu pescoço, tirou um anel de coco do dedo. Passou o barbante no anel e pediu que eu me virasse. Obedeci. Sentei-me de costas à ela e puxei meus cabelos para o lado. “Pronto” ela disse e eu virei para ela.

– Ficou lindo! Agora, você não me esquecerá, também.

O pouco juízo que ainda havia em mim desapareceu naquele momento. Não sei se foi o jeito delicado que ela tinha ou o perfume inebriante. Não sei se foi a forma como ela me olhava ou o jeito que sorria segurando em minha mão. Coloquei a mão em seu pescoço, passando-a por baixo daquele curto cabelo. Nossos olhos estavam colados quando a beijei. Um beijo que se eternizou em dois segundos. Mas, Amanda desfez o beijo.

– Não. – ela disse. Não era um comando ou uma rejeição. Era só uma constatação de algo que não poderia ocorrer. O tom era adequado, mas rasgou minha alma.

– Desculpe-me – disse me levantando. O rosto dela estava perdido em pensamentos que eu não alcançaria naquele momento. Ficar ali pareceu besteira, com cuidado beijei sua bochecha e fui à porta dizendo – Outra hora conversamos.

– Calma – ela disse – é que eu nunca beijei uma mulher. Fiquei assustada.

Eu também nunca havia beijado uma mulher. A questão é que Amanda podia ser homem, mulher, macaco ou um alienígena. Isso não importava. Eu queria meus lábios no dela. Pensando nisso, virei-me. Não houve tempo para qualquer palavra, ela puxou minha cabeça e beijou minha boca.

Beijamo-nos por quase uma hora, sem palavras. Era só o corpo dela no meu. Eventualmente, no entanto, acabamos conversando. Aquilo tudo era algo muito novo. Seria mais tranquilo deixarmos só entre nós, até termos certeza. Por isso, continuaríamos nos encontrando com a turma para o tereré, tentando evitar que qualquer um descobrisse.

– Pode me responder algo pessoal – ela perguntou sem jeito naquele mesmo dia.

– Sim, claro – sorri – pode perguntar o que quiser.

– O Pedro e você, já ficaram juntos? – eu quis rir. Pedro era realmente bonito, mas, talvez por estar tão atraída por Amanda, nunca o vi como alguém além de um amigo. E foi isso que falei para ela.

– É que, sempre achei que ele tivesse uma atração por você – ela continuou – você não sente nada por ele, tem certeza?

Ela me questionou sobre o mesmo assunto mais algumas vezes naquele dia e, mesmo que a resposta fosse a mesma, ela continuava a perguntar. Só parou quando eu perguntei se ela ainda sentia algo por ele, afinal tinham namorado tanto tempo. Ela deixou o assunto de lado e nossos beijos deixaram o assunto para trás.

Os dias passavam e sempre nos víamos. Conversávamos por telefone, mensagens de texto e pessoalmente. O importante era sempre estarmos em contato. Essa foi a razão da minha estranheza quando de repente, numa sexta-feira, ela ter sumido. Ninguém atendia seu telefone fixo ou celular. De começo, achei que não era nada. Mas quando as ligações começaram a ser cortadas, como quando alguém rejeita a chamada, passei a ficar preocupada. Não lembrava-me de ter feito nada para ofendê-la ou algo do gênero. Tomei coragem então e liguei no escritório de seu pai. Uma secretária atendeu e disse que Amanda não estava mais trabalhando no escritório, me passando os outros telefones de contato. Infelizmente eram os mesmo nos quais eu ligava e ninguém atendia. Pensei na ideia do pai dela ter descoberto nossa relação e tê-la colocado de castigo. Mas, se fosse o caso, a secretária não teria passado o contato como se nada tivesse ocorrido. Tudo que podia fazer era esperar.

Sábado à tarde, como de costume, Pedro tocou minha campainha. Eu estava acabada. Com um sorriso falso disse a ele que não estava no clima para sair. Ele ignorou minha desculpa e falou que esperaria ali no portão até eu me arrumar para ir junto. Vendo que ele falava sério, pois sem esperar minha resposta sentou-se na calçada, resolvi que não haveria problema sair de casa. E fui além, talvez Amanda estivesse lá como sempre. Uma esperança que ao fechar o portão perdi.

– Nossa, você demorou – disse Pedro – achei que ia dar o bolo em nós, como a Amanda.

– A Amanda não vai hoje – perguntei ainda chocada pela informação.

– Não, ela me ligou para avisar – vendo meu olhar curioso Pedro deu de ombros – só que não sei o porquê. Ela não quis me contar.

Apesar da constante preocupação por Amanda, que ainda não respondia qualquer mensagem no celular, a tarde foi agradável. Pedro estava inspirado e tocou uma sequência enorme de músicas românticas, a maioria rock dos anos oitenta, o que lhe rendeu brincadeiras do tipo em que os meninos falavam “Pedro tá apaixonado, que bunitinho” cada vez que acabava uma música.

Não muito tarde, naquele dia, fomos embora. Pedro e eu passamos na frente da casa de Amanda. Eu parei e toquei a campainha. Apesar de vermos um movimento nas cortinas, ninguém nos atendeu.

– Ela provavelmente está com algum namorado feio e não quer que saibamos. – disse Pedro, rindo. Ao ver que eu não ri, ele notou minha preocupação – Fique tranquila, não deve ter acontecido nada. Se fosse algo ruim nós já saberíamos, não acha?

Aquela frase de Pedro foi como uma compressa fria em minha febre. Realmente, notícias ruins viajavam em velocidade absurda. Além disso, Amanda gostava de mim, eu sabia. Tentei ficar calma e seguimos para a minha casa. Pedro falou que ficaria ali até ele me ver mais tranquila. Eu agradeci e ficamos conversando, sentados no meio-fio. Pedro começou a contar histórias de vendas e acabei rindo muito. Caso a preocupação com Amanda não estivesse tão latente, com certeza, teria rolado de rir na calçada. Todavia, ela estava lá.

Lembrando-me levantei, batendo a calça para tirar o pó enquanto agradecia a Pedro pela companhia. Ele sorriu. Eu o abracei, me despedindo. Notei que precisava de um abraço amigo como aquele. Pedro, no entanto, queria mais e ao terminar o abraço, ainda me segurando, me beijou. Eu rapidamente fechei a boca e o afastei. Pensei em Amanda na hora, me questionando sobre Pedro, e falando de sua atração por mim. Ele notou minha rejeição. Eu, apesar de realmente não deseja-lo, não queria magoá-lo.

– Eu gosto de outra pessoa – disse.

Pedro desculpou-se, interrompendo quaisquer explicações que eu pudesse dar, sem palavras virou-se e foi embora. Quando ele dobrou a esquina eu notei que meu rosto se enchera de lágrimas. Chorava pelos dois últimos dias. Chorava por mim, por Pedro e Amanda. E chorando que acabei dormindo aquele dia.

No dia seguinte, quando acreditava não haver mais lágrima a ser chorada, descobri-me enganada, ao abrir a caixa do correio. Apesar de ser domingo, eu tinha a estranha mania de conferir a chegada de correspondências ao sair de casa. Lá estava um envelope. Dentro o colar de Amanda, com a palheta que eu havia dado, e uma carta. Na carta poucas palavras narravam que finalmente ela tinha conseguido o emprego em Curitiba e que tinha tomado os dois últimos dias para decidir, pois acreditava em nós. Dizia ainda que tinha tomado a decisão de não aceitar o emprego, mas que eu a fiz mudar de ideia. Ao correr para minha casa, ela viu Pedro e eu abraçados. Ao vê-lo me beijando não aguentou, foi embora. Voltou ali para depositar a carta. Enquanto eu pegava o celular, desesperada, e ligava para ela descobri que não havia um limite para a quantidade de lágrimas que podiam sair dos meus olhos.

Por fim, ela não me atendeu. Não respondeu mensagens, e-mails ou qualquer tipo de contato. Descobri que ela tinha ido na mesma noite, que viu Pedro me beijando, para Curitiba. Ela nunca mais voltou. Se voltou, fez sem me deixar saber. Hoje não sei se foi a quantidade de lágrimas que chorei por ela ou se eu estava certa no começo, ela tinha levado muitas cores da cidade consigo.