Meninos de rua - o abismo
Era um imenso buraco. Ali a garota se movia freneticamente, de passadas largas. Consumia várias pontas de cigarros. Confesso que era o que de mais fraco entrava no seu corpo pouco. Suas olheiras não me deixavam mentir. Não dormia nunca e exalava um cheiro muito forte. Eram os traços da decomposição. Um leve corpo consumido por tantos vícios, que emergiam de sua face magra e denunciavam as misérias da alma. Seus dedos, ainda infantis, estavam povoados de chagas, muitas delas abertas como uma boca escancarada. Sufocante o meu olhar naquele momento. Inquieto, tentei falar com ela ali mesmo, no buraco que havia cavado durante os poucos anos que ingressou e não pagou o ingresso do vício. Seu olhar não comunicava nada. Nada ainda era muita coisa para um ser esquecido de si mesmo e com certeza esquecido pela própria sociedade, que se faz de demente e ousa contradizer o bom senso de cada um de nós.
Ali a pobre menina era um bicho só. No grande fosso entre nós jogavam-lhe restos e ela correspondia partindo e rasgando tudo o que tivesse cheiro. Não era seletiva, às vezes expelia algo indigesto – tecido, pontas de cigarros, tampinhas de refrigerante. Tossia e trancava a cara. Falando em cara, a pequena tinha envelhecido bastante nos poucos meses que a observei. As rugas falavam de sua pobre vida, cada sofrimento estava cravado no seu rosto e no resto do corpo, como uma referência de tempo marcado ali nas carnes. Os dedos secos, como as pétalas murchas da flor, prendiam tremulamente um fino cigarro formado a partir de outros tantos bicos de cigarros que os transeuntes jogavam acesos para saciar o seu vício.
Trêmula. O seu corpo trepidava pela manhã, depois de ter adormecido no fétido chão. Pedia mais entorpecentes. Algumas vezes ela estava de cócoras, comprimindo os gravetos dos braços, ficando cada vez mais finita. Parecia chorar. Não sei se alguma lembrança a atormentava e causava saudades. O fato é que a menina de cabelos amarelos arrepiados, janelas na boca que nunca se fechavam, era só um ponto.
Não tinha ninguém. Não era ninguém. O seu sofrimento era só meu. Não pude amainá-lo. Não pude afagar os seus cabelos que se engalfinhavam. Quem sabe por culpa mesmo. Eu sou a negação daquilo que se passou dentro daquele buraco. Desisti de tentar tê-la em meus braços e acolher suas pequenas lágrimas. Pudera eu ter essa força? Engasguei. Ali detive minha participação. Não pude mais olhar aquela tela de cores vivas, ásperas e concretas. Como todos os outros, virei as costas e caminhei. Meu arrependimento começou ali. Senti-me um covarde. Nem mesmo chorei sua dor.
Voltando às pétalas da murcha flor, deduzi que a cada passo meu as peles enrugadas se desprendiam do pequenino corpo. A menina de rua, entorpecida desta vida foi-se indo cada vez mais fraca e se apagando. A sua presença foi se omitindo e o sopro que a trouxe a vida foi companheiro na morte. Ali no seu imenso buraco pôde descansar pela última vez até que a recolhessem numa sessão diária de limpeza pública e outro buraco a engolisse dos pés a cabeça e um som abafado embalasse o seu sono pra sempre.
Esse quadro nunca mais sairia de minhas memórias...