Dias Chuvosos
Dias chuvosos
Jorge Linhaça
Uma velha barraca “iglu”, dessas para duas pessoas, era sua única proteção contra as intempéries.
Nada restara de sua vida pregressa, uma série de acontecimentos e “azares” o levaram ao estado atual. De vantagem, apenas o fato de poder mudar-se sempre que desejasse e, qual um caracol, levar consigo a sua casa às costas, literalmente.
Tinha de disputar espaço com tantos outros, caracóis humanos que perambulavam pela cidade, em busca de um cantinho para descansar o “velho saco de ossos” enquanto buscavam conseguir algum trocado das mais variadas formas, desde as lícitas, até às ilícitas.
A diferença entre ele e os outros moradores das ruas era o fato de não ter grandes vícios, ao menos não os vícios que levam à perda de contato com a realidade.
Durante muito tempo havia analisado cada “novidade” na sua condição atual, analisava também, por comparação e até mesmo por empatia, a situação de cada um dos “novos vizinhos”.
Cada rosto continha uma história diferente, cada ruga era um capítulo da vida de cada um.
Cicatrizes físicas eram comuns, mas nada tão comum quanto as cicatrizes emocionais e espirituais.
O “povo da rua” era heterogêneo, alguns nasceram nas ruas e ali passaram a sua vida até hoje, outros começaram como fugitivos de suas casas, onde as condições de vida e sobrevivência eram piores do que correr os riscos de viver ao relento. Para estes, a lei da selva era a única lei que conheciam e respeitavam, o senso de sobrevivência, desde sempre, se sobrepôs a qualquer convenção ou lei jurídica.
Para outros a história começou com vícios que não conseguiram superar até hoje, álcool, drogas, luxúria e sabe-se lá mais o que. Tudo isso consumiu seus corpos e almas, além dos recursos de que dispunham, até que mergulharam nas ruas e não mais voltaram à superfície.
Outros estão ali “provisoriamente”, embora o provisório seja cada vez mais permanente, pois uma coisa leva à outra e à outra e à outra...Quem mora na rua não tem endereço, não tem condições de manter uma aparência impecável, não tem acesso à tecnologia, a vagas de empregos...O que resta é talvez a informalidade ou a mendicância, ou, em último caso, até mesmo a criminalidade.
Ferrugem, esse era o apelido de nosso “herói”, enquadrava-se nesta última categoria: A dos provisórios permanentes.
Já tivera casa, família, emprego, estudos superiores...Sabia discorrer sobre vários assuntos e aprendera, ao longo da vida, a compreender os meandros da alma humana, porém, nada disso ou tudo isso somado, foi o suficiente para impedir que fosse levado de roldão por uma série de acontecimentos ao longo da última década e que culminaram com sua “vida nômade” forçada.
Sua auto-estima havia sido seriamente afetada, tanto no aspecto emocional quanto no profissional, agora, aproximando-se da terceira idade, não via grandes perspectivas de retomar seu antigo lugar na sociedade. A velha mente cansada já não compactuava com conceitos e preconceitos, voltara quase que à rebeldia de um jovem adolescente, contestador e rebelde. A diferença é que não era um “rebelde sem causa” e contestava com fundamentos. Sabia que não poderia mudar a sociedade, mas recusava-se a render-se, a compactuar com o que não considerava correto.
Ferrugem era mais um rosto invisível na rua, mais um “mendigo sujo” que “não queria trabalhar”...um folgado esmolento tentando surrupiar trocados usando de chantagem emocional ou de sua aparência depauperada.
As pessoas sequer o fitavam na cara quando ele as abordava, às vezes apenas para obter uma informação sobre locais ou horário.
Muitos atravessavam a rua ou faziam voltas largas para evitar a proximidade com aquele ser que, ainda que inconscientemente, era uma imagem de um possível futuro deles mesmos.
Um dia a barraca de Ferrugem permaneceu montada, no mesmo lugar, após o horário de desmonta-la para evitar problemas com as “autoridades”. Poucos perceberam sua ausência, fixados apenas na insólita presença da barraca na via pública. O dia passou e a barraca lá...a noite chegou e com ela a acomodação natural dos ânimos e da paisagem.
Chovia, chovia copiosamente desde o dia anterior, com breves intervalos de estiagem, a chuva escorria pelo nylon da barraca, encharcava a rua e formava correiras nas calçadas. Em meio a tudo isso, a barraca de Ferrugem permanecia ali, destoando da paisagem, totalmente fora da paisagem urbana. Foi inevitável, alguém acionou as autoridades, talvez por preocupação, mas provavelmente por irritação, e logo a equipe da prefeitura chegou para “liberar o espaço”. A surpresa foi quando, após chamar e não serem atendidos, abriram a barraca e encontraram o corpo do ferrugem, com ar de uma paz que de há muito ele não trazia estampado na face.
Nas suas mãos um caderno velho e surrado, o manuscrito do que poderia ser um livro: “Memórias de um mendigo invisível”.
Veio o IML, levou o corpo, a aglomeração em volta da barraca foi se dissipando e, assim foi se dissipando também a pouca lembrança que alguns guardavam de Ferrugem...o mendigo invisível, cuja única lembrança palpável ficará para os poucos curiosos que lerem seu manuscrito.
A chuva continuou e lavou a calçada, já liberta da barraca, levando consigo qualquer resquício do seu derradeiro habitante.