Virando o Jogo.

Andou apressada tanto tempo, sem se demorar nas conversas, ou aproveitar com prazer os sorrisos a sua volta ou as conversas. Agora sua vida estava no ponto que sempre almejou, por que então tinha aquela sensação estranha de reviramento no estômago? Tinha algumas sensibilidades advindas com tantas frustrações na vida. Ser adulto para ela foi dizer não com cada vez mais frequência, disse não para as aulas de dança que queria fazer, não se envolveu demais para não machucar o coração, conteve aquele riso solto para que não a achassem deselegante, conteve o palavrão no momento em que tudo desmoronava, abriu mão daquele relacionamento complicado que lhe fazia um bem danado na cama, não comia mais doce fora de hora, depois não comia mais em hora alguma. Chorando estava quando saiu caminhando na direção oposta a ele, ela não sentia raiva, porém poderia sentir que aquilo abrira algo em seu espírito. Era como se tivesse refeito todo o percurso da sua vida regrada naquele segundo. Um pensamento veio a sua mente como para ditar novas regras para sua confusão daquele momento. Sentia uma urgência em ser extremamente feliz, exaurir a partir dali cada segundo de sua existência, seus olhos embaçados das lágrimas não a deixaram perceber que o céu ficara nublado como se compartilhasse com ela aquele momento gris. Sentiu algumas gotas acariciarem sua face e se misturarem ás lágrimas de seu rosto. A precipitação de uma leve neblina passou a um temporal, apressou o passo e seu chinelo de dedos ficou preso em um buraco, partindo quando ela tentou se desprender, como que para rir dela ainda mais... Estranhamente ela começou a rir. Começou a pensar que talvez o escritor desse conto poderia melhorar essa existência sôfrega e apática que tinha sido até ali vida de Noelí. Com esse pensamento pueril se deu conta que seu conto era escrito por ela mesma, sentiu-se clichê, não mais do que se sentiu idiota. Seus cabelos rapidamente tornaram-se pesados e molhados pela chuva. Continuou andando observando a alternância de seus pés, um com chinelo e o outro sem nada. O pé sem chinelo continuava sua caminhada sem perceber sua recente perda. O pé calçado seguia seu rumo tão molhado quanto o outro e também ignorava os recentes acontecimentos de seu vizinho. Observando seus pés pensou em si mesma e resolveu tomar a atitude de seu pé descalço. Talvez nem tanto por admirar sua resignação e persistência, mas por ter notado a total indiferença de seu pé calçado.

Essa lembrança lhe veio e ela não sabia bem o porquê. Agora Noelí estava diferente, não apenas pelo cabelo bem curto que, embora molhados por outra chuva igualmente torrencial ao daquele dia rememorado, não ficaram pesados mesmo encharcados de chuva, ou pela tatuagem que dizia “freedom” rodeada de passarinhos no seu ombro esquerdo, mas pela forma como se sentia naquele momento. Agora como um “dejá vu” seu chinelo arrebentou enquanto ela estava na metade do caminho de ida... ela nem olhou para o chinelo quebrado, simplesmente passou a mão nos cabelos encharcados sacudindo a água acumulada para todo lado, com um sorriso largo sem explicação ela sentiu a areia entre seus dedos e entrou no mar dando um profundo mergulho.

Quando emergiu seu sorriso continuava largo e em seu pensamento essas palavras ecoaram de forma audível: Vou ser feliz mesmo que meu chinelo quebre na metade do caminho de ida, eu vou mesmo sem saber se chego. Eu só vou. E vou continuar indo!

Suze Rodrigues
Enviado por Suze Rodrigues em 22/07/2015
Reeditado em 23/07/2015
Código do texto: T5320152
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