OS LIVROS QUE EU LI.

Passei o tempo ocioso da minha infância, sentada nos degraus subsequentes a um grande patamar,entre dois lances de escada,onde meu pai construiu sua biblioteca.

Homem sem muito estudo, coisa tida como desnecessária para a época,uma vez que se soubesse escrever e fazer as quatro operações de matemática,buscou conhecimentos nos livros;coleções que ele cuidadosamente mandava encadernar em couro colorido com escrita frontal do título em dourado, onde cada cor identificava um autor.

Graças a eles,papai faleceu com apenas cinquenta anos de idade,na época,entre os homens considerados mais ricos do país;porque ousadamente arriscou-se em vários campos,que estudava sorvendo cada palavra e deu-se bem em todos eles.Sua maior herança entretanto,foi minha mãe, sua fiel escudeira,que através da leitura,conseguiu na ausência dele, ser pai e mãe com sucesso e desenvoltura.

Talvez os exemplos de ambos,talvez a minha imensurável curiosidade,talvez o acesso facil a uma extensa literatura ,fato é que tive duas infâncias.Moleca,brincava na rua de tanga e ao subir as escadarias por qualquer motivo, algo como que me encantava,e não conseguia o meu intento,sem antes uma paradinha,para o encontro com os livros infantis de Monteiro Lobato,que me levavam a incríveis aventuras,tão prazerosas, que chegavam a se confundir na minha cabeça de criança ,com as que na realidade eu vivenciava.

Com o passar dos anos,não sei se por amor ou por hábito,esta ação fortaleceu-se em minha pessoa e igual a um viciado,comecei a consumir páginas e páginas,ainda sentada no mesmo degrau,onde meu corpo,agora maior,desconfortavelmente ainda se encaixava.

Finalmente ali ficava,só para ler os livros que escutava serem proibidos para menores de idade,como "Eu e o governador" de Rachel de Queiroz, pois num possível flagrante,fácil seria realizar rapidamente uma troca,o que me isentaria da culpa,mas não do conhecimento.

Com a passagem da adolescência a juventude,passei a carregar os livros comigo,para lê-los onde bem me aprouvesse e comodamente eu coubesse,não mais só nas escadarias,onde se eu insistia em ficar por muito tempo,doiam-me os joelhos,apesar de eu amar aquele lugar.

Meu pai era eclético em suas escolhas e li de Machado de Assis,José Mauro de Vasconcelos, Humberto de Campos e outros a autores dos quais o nome não me recordo mais,tão impactante eram suas obras,como o romance Marguerita La Rocque,cujo final,comparo comigo,agora,que me visita o envelhecimento e só me lembro de ter sido escrito por Diná Silveira de Queirós,pelo mesmo ter sido considerado um dos raros exemplos de romance fantástico na literatura brasileira e por este motivo,ter sido traduzido para o francês e o castelhano.

E assim como tive duas infâncias, tive múltiplas adolescências, inúmeros amores e muitas vidas.

Quando terminei com as escolhas de meu pai,passei a consumir livros que me eram indicados,best sellers, e muitos outros desconhecidos,que me chamavam atenção pelo que continha escrito nas orelhas.

Aprendi um pouco de Italiano com as fantásticas obras de Luigi Pirandello, arrisquei o francês em Bonjour Tristesse,de Françoise Sagan e tornei-me autodidata em inglês.

Mudei de casa três vezes,após a morte do meu pai e das minhas queridas escadarias,mas nossa biblioteca que crescia dia a dia,mudava - se conosco,até que,no último e pequeno apartamento,onde morávamos só eu e minha mãe, uma de minhas irmãs sugeriu que dividíssemos as coleções, o que incrementaria a decoração de suas casas e aliviaria o espaço na minha.

Ilogicamente resolveram fazer esta divisão,longe dos livros,no apartamento vizinho,morada de uma outra irmã.

Apenas uma delas entrava em minha casa e carregava uma das coleções por vez para a casa da outra,onde escolhiam com seus maridos que sentados,não as ajudavam no trabalho físico,apenas nos palpites que usavam como determinante em suas escolhas.

Dividiam,vinham,pegavam mais,até que num certo momento tardio,como é de costume das mesmas até hoje,notaram minha ausência.

Uma delas apenas,autora da idéia da divisão dos livros e mais tarde da herança, o que culminou com a morte por acúmulo de tristeza,de minha mãe, disse :Ué, você não vai participar?Disse-lhe:Não, enquanto observava de soslaio,minha mãe, que placidamente dormia,enquanto sua casa era espoliada.

Eu realmente não me importava,assim como mamãe. O principal, o conteúdo,estava dentro de nós e isto, ninguém nos tiraria.

Ao terminarem a inglória tarefa,retornaram com os livros que me cabiam e sorri ao ver suas escolhas;então fui conferir o que meu cérebro já havia me contado.

Minha irmã mais velha,ou melhor,meu cunhado,havia escolhido as melhores e mais belas encadernações, sem considerar os autores.Minha irmã do meio, ou melhor,meu segundo cunhado, havia escolhido livros tipo dicionários,e dissertações sobre origem e utilidade das coisas,assim como vida dos escritores e descobridores famosos,pois tinham filhos adolescentes, para os quais o conteúdo poderia,ser útil.

Com o passar dos anos,uma delas ainda expõe, ainda que empoeirados,belos livros encadernados,que nunca foram lidos em seu lar.A outra,que não suporta nada nem ninguém por muito tempo,doou os seus a uma biblioteca,pois como tudo em sua vida,eles também lhe cansaram.

E este foi o fim que deram as intenções de meus pais,que de muito se privaram para que suas filhas tivessem uma primorosa educação.

Os meus?

Suportaram uma viagem de mais de mil quilômetros e estão expostos para quem conhece seus valores.

Já lidos e folheados muitas vezes por mim,não tenho neles,interesse cultural,nem financeiro,mas cada vez que os olho,lembro de meu pai,investindo por nós,sinto a presença de minha mãe, sempre lendo algo de conteúdo de delicadezas,de levezas, coisas que sempre amou e admirou.

Conheci meus pais pelos seus atos,que as vezes,na minha imaturidade,cheguei até a odiar,e os conheci também pelo que leram,pois vivenciamos através dos livros, experiências iguais,assim como da mesma maneira,conheci minhas irmãs e seus respectivos cônjuges,pelos seus atos, e ironicamente pelas capas dos livros que jamais leram.

Por isto,não considero que tenha livros antigos,hoje facilmente substituíveis pela internet;tenho jóias,pessoas que amo e admiro e outras tantas que ao olhar para eles,lembro que não devo olhar para elas.

Eles me deram sapiência,diversão, conhecimentos, vida,mas principalmente foram o manual para o conhecimento humano,que determinou minha formação em Psicologia,na Universidade de São Paulo.

Atualmente minha biblioteca tem outro aspecto. Meu pai adquiriu o que era importante naquele momento da vida;eu somo as suas aquisições, o que é importante, para este momento,e quanto mais eles me ensinam,mais quero aprender,mais quero viver.

Dizem que a vida é curta.Espero que ela seja longa,e que continue vida após vida,tal qual meus livros estão me mostrando,porque viver é a experiência mais digna e incrível, principalmente quando se pode viver em uma,através dos olhos e vivências alheias,muitas vidas.

Caminhar entre as estrelas,apreender o universo, compreender as marés e ser uma parte de Deus. (eu)