A Enfermeira & O Prefeito [CAPÍTULO 03]
O Prefeito
A tempestade rasgou o céu do interior. Chegava assim a aguardada quarta-feira, a qual fora prometida pela assistente como encontro entre Morgana e o saudoso prefeito; este personagem fabuloso que a boa moça ainda não vira, mas somente entendera seus status.
Assim, chegando ao gabinete meteu-se saguão adentro, sem remeter aos lados o olhar para os faustosos. E vindo ao balcão, como costumeiro, foi encarada por olhos crus da indiferença.
Num diálogo pífio a atendente pediu para que aguardasse nos acentos, que já sabíamos ser bastante endurecidos e descômodos. Discorrido algum tempo, a secretária indicou para que se dirigisse a uma porta que dava ao interior do gabinete.
- E eu resisti ao teste de Deus, com essa chuva toda e tendo que me abancar em cadeira dura. – Vangloriava-se assim.
Surgindo à frente um corredor bastante cortês, com todos os moldes de madeira vermelha, logo foi-lhe chamada a atenção por uma nova atendente, que lhe parecia tão insolente ou mais do que a anterior, e somente com os olhos claros, num movimento das pupilas indicou para que atravessasse uma porta.
Nesse instante, como um impacto, Morgana já sentia-se ínfera aos indumentos corteses e elegantes com que ornavam as personalidades formais daquele ambiente; mormente quando comparava suas simples calças de brim e blusas naturalíssimas, que foram pechinchadas em alguma localidade facultativa do centro.
Com educação, bateu e de leve e entrou; dando de frente com um rotundo, calvo e bigodudo, com a amarrotada camisa sob as texturas do xadrez, repimpado na cadeira, com os pés na superfície da mesa e espremendo a ponta do cigarro num cinzeiro de prata.
O homem repolhudo, assim que deu-se conta da presença da mulher, mudava radicalmente suas feições; antes avacalhado ao observar as cinzas se espalharem, agora, com o olhar fito na silhueta de moça, mudou-se no perfil mais solícito e diligente que ela já vira, levantando-se com total prontidão.
- Olá minha filha! Finalmente eu pude lhe atender. – E aproximava-se da moça, lhe beijando ao rosto e pegando-lhe às mãos. – Mas sente-se. A que devo a honra de sua visita? Uai.
- Veja senhor prefeito: não vim aqui com intenções de bafafá, mas tenho muito que vir comunicar que o novo hospital municipal, aquele da Rua Coroados, está num estado deplorável.
- Ah vá! O ‘‘Mão Santa’’? E eu não creio! – Surpreendeu-se o prefeito.
- Pois creia; que é a pura verdade. Faltam medicamentos, itens hospitalares, os horários são bagunçados, não tem organização, alguns enfermeiros estão displicentes, as macas têm de ficar em corredores de espera... Tudo um caos!
- Ó minha filha! E como me deixa intrigado o que você me fala, porque já era para estar havendo muitas reformas desde a inauguração.
- Pois então, senhor prefeito, algo está havendo de muito errado, pois aquilo ali parece um mausoléu.
- Virgem Maria! Pois está mesmo, porque era para aquele lugar estar totalmente emperiquitado com os trabalhos.
Seguiu-se aí uma prosa justificativa, que explicava todo o planejamento com a parceira privada que geraria recursos para o ornamento do novo hospital; e esta empreitada serviria de exemplo a grandes cidades, tornando Marília a suma pioneira. Uma cena que retrata o eufemismo urbano, a qual um cidadão escuta atencioso um político lhe falar e gesticular com as mãos.
- Minha filha, em primeiro lugar, tem os meus cumprimentos pela tua atitude de cidadã e de humanidade. E assim já lhe afianço, que a partir de hoje eu irei exigir saber o porquê o contrato com a empresa não está sendo respeitado, como foi assinado. A senhora pode ficar tranquila.
- Mas que maravilha! Senhor prefeito, foi bom ter esperado para falar contigo, pois agora vejo que é um homem íntegro e só quer o melhor para nossa cidade.
- E quê isso! Eu é que agradeço. Fique calma, a tua visita não será em vão.
E foi-se Morgana, com lascas de felicidade que lhe jorravam do espírito, tudo por ter uma boa conversa com o amável prefeito. Decerto lhe parecera que a burocracia vinha dos subordinados, que trescalavam o veneno da inveja e subserviência. Mas os nobres da verdade, estes sim são solícitos e humildes.