A Enfermeira & O Prefeito [CAPÍTULO 02]
O Gabinete
Nossa moça de Campo Belo então impeliu-se a se meter simplesmente no gabinete do prefeito de Marília; tudo para comunicar-lhe sobre os quase escombros aos quais se encontravam o centro hospitalar. Martírio tanto para trabalhadores, como pacientes.
Então, dando de frente com as carregadas portas de ferro e vidro, teve certo atravanco em atravessá-las, porém foi em frente, e deu de súbito com um âmbito levemente cortês, onde trajes eram normalmente sociais e o verbo era solto ao baixo tom. Dessa forma, Morgana sentiu-se um pouco ressabiada ao seu íntimo, pois sendo humilde e do bom povo, teria dificuldades em associar-se à pompa caipira e educada.
Devido à novidade do ambiente, não sabia para onde se mover. Chegando-se ao primeiro balcão que viu, sendo cruamente observada por uma atendente com trajes formais e que lançou olhos frios e castanhos, abaixo de lentes de óculos. Esta recepção soou como um desdenho daquela caucasiana para com a negra que vestia somente roupas simples.
- Posso ajudar?
- Pois pode sim; eu gostaria de prosear urgente com o Sr. Prefeito.
De leve a recepcionista ousou-lhe arregalar as pupilas, ainda que o olhar permanecesse brando e displicente.
- Como disse?
- Falei que preciso prosear urgente com o Sr. Prefeito. Sou enfermeira do novo hospital, e preciso conversar sobre isso.
E a atendente, fria como o mármore, puxou o gancho e contatava não se sabe a quem, pois corriam de cinco a seis ligações em pouquíssimos instantes, e devo dizer que o conteúdo das chamadas deve permanecer sigilado, pois a mulher pronunciava-se baixíssimo, sendo assim impossível identificar o contexto das rápidas ligações.
- Desculpe senhora, mas o Sr. Prefeito está em reunião e não pode atendê-la. – Finalmente informou a recepcionista.
- Ah, mas eu preciso prosear com ele! Moça, me escute: tem gente que irá morrer por ser mal tratada, coitados daquele hospital! Tudo mal pintado, não há medicamentos o suficiente, faltam médicos, enfermeiros, ambulâncias, precisa ficar camas nos corredores!... Ele tem de me atender! Senão, vai ver a jabiraca que eu sou!
- Está muito bem; deixe um número para que possamos entrar em contato assim que houver um espaço na agenda.
Pode-se dizer que Morgana era um tanto quando ingênua, pois avivou-se e teve esperanças de resolução dos problemas quando a atendente lhe pediu um contato; mal sabia a pobre, que aquilo era somente trunfo para despacho.
Confirma o que digo quando posso revelar que correu uma, duas e três semanas sem nenhuma chamada. Morgana já não suportava de excitação, pois cada vez mais observava que o mendicante hospital já se apresentava com condições medievais, e totalmente desfavorecedor aos desprovidos pacientes. Num dia faltava a novalgina, noutro a dipirona, então um doente aparecia e não havia roupas de cama; e por muitas vezes nem mesmo leito disponível. Prosseguiu-se.
Com a raiva a borbulhar pelo desapontamento de uma espera inacabável, fora novamente a nossa boa moça de Campo Belo ao gabinete pomposo da prefeitura; com os olhos vermelhos de valentia da guerra e justiça, nem mais quis observar a grife ou estirpe dos ali presentes; tampouco inferiorizou-se pelo baixo custo de suas vestimentas, estas adquiridas em algum comércio do centro; meteu-se a frente da aras da mesma atendente, que ainda possuía o olhar turvo e marmóreo, e convertida a um perfil revoltoso, acertou a palma na superfície da bancada.
- Escute moça! Faz três semanas que estive aqui, e você me disse que retornaria assim que a agenda desse prefeito desse uma trégua. Até agora nada! Veja bem: não sou oreia! Sei que estão querendo me tirar de palerma! Mas daqui não saio até ver esse diabo de homem!
E todos volveram o olhar àquela cena de esconjuração e rebeldia; somente destoava da alarmância dos demais a tonta assistente, que lhe fitava os olhos como se a indolência a dominasse.
- A senhora bem sabe que se der escândalo eu vou ter de chamar os seguranças.
- Pois não vai ter motivo algum, pois eu vou esperar quieta, porém decidida. – Disse, sentando-se fogosamente a um dos assentos de espera, bastante descômodos, por sinal.
A calmaria voltou a dominar os ares, e a atendente remexeu nas milagrosas ligações, fazendo discorrer um desconfortável intervalo de tempo, que na verdade era uma grande artimanha para incitar a desistência de Morgana; não obtendo sucesso em sua empreitada torpe, observando que a mulher era altamente turrona e longânime, fez sinal para que a jabiraca, como a própria definira-se, se aproximasse.
- Quarta-feira, às oito. – Disse, seca; sem mesmo a olhar de esguelha.
Retribuindo a despeita, Morgana somente virou-se, e com total desplante nos passos fortes, deixou aquele saguão com a cabeça nas nuvens de um humilde orgulho.
- Vamos ver se me escuta ou não, esse ridico dos infernos.
Tomava o caminho de casa a muurmurar consigo mesma, esbravejando entre trovoadas de xingos todos os instantes que teve de aguardar por uma mísera reunião, que em seu pensamento, julgava ser direito como cidadã.