A Enfermeira & O Prefeito [CAPÍTULO 01]
O Oratório
Havia então a mulata de olhos e mãos sutis, que viera de Campo Belo para fazer plantões no novo hospital de Marília, intitulado de Mão Santa. Este edifícil fora recém inaugurado e prometia grande centro médico na cidade; pois o florescimento e posterior funcionamento corria com o conhecimento de uma parceria de empresa privada junto à prefeitura local, que tendia a transformar-se num modelo de construção e planejamento para demais províncias interioranas , independente da capital.
E logo aos primeiros dias parecera-lhe bastante auspício e verossímil tudo o que esperavam daquela nova empreitada, que viria a ser a pioneira de grandes sociedades públicas-particulares que as gigantes metrópeles deveriam seguir como o exemplo. Sendo bom e passivo este povo, propendemos a acreditar nas promessas feitas com bonitos olhos e palavras.
Ao andar por todos os corredores, isto logo nas primeias semanas, transpunha o amor com que praticava suas ações de profissão. Assim, fazia por procurar por quem necessitasse de certo cuidado e somente aqueles que gemiam de dor e de manha, pois enxergavam o hospital como o inferno de fria temperatura; interpretação diferente da de Morgana, nossa moça, que somente o perfilava como um recinto curador e necessário. Bem certo que usava a razão, diferente de muitos, inclusive do próprio autor, que foge só de se apresentar a fachada.
Contudo, o sorriso que lhe ornava a face tinha por desaparecer em pouquíssimo tempo. Vamos às explicações: antes somente desfilava pelos corredores aos quais haviam descascos pelas paredes, tudo à procura de certo internado para lhe auxiliar na dor, executando seu trabalho com uma agulha à veia; ou talvez para trazer alguma refeição, decerto um pão amanhecido e um café nada doce. Mas passando semanas, e consequente meses, reparava que as instalações somente pioravam. Os rasgos descascados da pintura lhe apresentavam com miséria. Os quartos mal iluminados já aparentavam funestos. O chão pessimamente varrido dava a impressão de abandono. E as condições precárias com que os pacientes deviam ser tratados, já se revelava desumano. Pairava a tristeza nas íris da mulher.
Ao primeiro andar, havia um vão côncavo pelo meio de duas portas, onde uma cantoneira comportava a imagem de Nossa Senhora, e ao mesmo modo servia de oratório. Havendo duas velas, que eram acesas no momento de oração, a cada lado do altar e um terço envolta do corpo da santa, que era rezado todas as manhãs antes do início do plantão. E nesta cena, encontramos Morgana quase ajoelhada, digo que derreada, na esteira que dividia o espaço reservado, ao resto do corredor.
- Minha Senhora! – Clamava ela com toda a fé. – Tu és a padroeira desse nosso Brasil, e também sabe que minha fé é inabalável. Então eu peço: dê abênça ao nosso hospital! Rogai por este povo que tanto já sofreu por falta de recursos. Rogai por nós Mãe do Céu!
E proferidas Ave Maria, também o Pai Nosso, terminava mais uma seção de fé com sua devoção, que é extremamente peculiar ao dogma católico. E era verdade que a fé de Morgana não revolvia de forma alguma, mas o discorrer dos dias já pairava certa incredulidade e tristeza no semblante desta boa moça, pois a miséria lastrava ainda mais pelo âmbito do hospital e obliterava o ardor do trabalho.
Houve uma tarde, em que remexia no estoque de gaze e palitos, e confessava a uma colega todo o desalento que se abatia sobre si, tudo por testemunhar a degradação daquele centro que viera tão promissor e ditoso, agora definhava-se num ambiente sórdido e medonho.
- E não adianta emburrar!
- Como que não?! Eu não paro de rogar, mas parece que Nossa Senhora não me escuta mais. E mesmo eu pedindo nada para meu bem próprio, mas sim para os outros, nosso hospital, nossa cidade, cada vez mais esse lugar está uma inhaca!
Então a colega aproximou-se com o olhar incrédulo e o sorriso cético.
- Ah é? E você sabia que Nossa Senhora não conserta safadeza?
Dito isto e ela se foi; mas ficou a revirar em seu pensamento um germe de comicha que lhe agarrou por todo o expediente, e também de volta para casa e durante toda a noite. E de tanto perscrutar e tentar a compreensão na palavra da amiga, conseguiu aí enxergar onde estava o nexo, e não somente fora ceticismo ou pura displicência cristã. A fé é poderosa quando abre os mapas para as faces do infinito, mas a crença pobre regride aos olhos à utopia que não há de vir.
Morgana então decidiu ir ter com o prefeito.