Rosa

Rosa sentou para ouvir -se. Ela disse a si mesma que naquele dia faria café, almoço e jantar. Já pela manhã o café ficou para trás. Chegou a ferver a água e deixar que o cheiro se espalhasse pelos cômodos. Mas quando ouviu o fósforo riscar e liberar chama para preparar o leite, era tarde demais. Rosa havia entrado em si. E teve de retroceder caminho, outra vez, e abandonar as tarefas que há tanto não conseguia concluir.

O coração aspirava a quentura do vapor à sua frente. Dançava um aroma que a sobrevoava, provocando a loucura. Preparando o cenário. E em tão pouco tempo ela haveria de esquecer o papel de mulher dedicada. Também, pouco importava. Rosa estava a sós consigo mesma. Ali, naquele amanhecer precoce, naquele silêncio do dia tímido, presumia que somente as almas tristes como a sua deveriam estar acordadas.

Coberta pela mesmice de um dia comum, quis fazer diferente. Mas tudo lhe saia igual. Era impossível manter -se de pé, pois o andar, ou simplesmente o ficar equilibrada sobre as pernas não acompanhavam os pensamentos que a transportavam para tão longe dali. Ela se mantinha com olhos fixos em quadros que não lhe significavam nada. Eram somente um apoio no qual repousar os olhos, pois quando viaja em si, os olhos físicos precisam ficar nesse mundo. E então tomava aquela pose estática, séria. Como se tão assombrosa imagem vislumbrasse nos rostos dos mortos das fotografias. Os mortos jamais a assustaram. Tampouco olhar o rosto deles lhe despertava qualquer efeito. Eram reais como ela. Fotos que não se diferenciavam das suas. Para Rosa, a morte não mudava nada. Nem parava para pensar nisso. A ignorava por completo, como uma catraca que se atravessa, se toca, mas nem se enxerga ao adentrar um lugar. Rosa era habilidosa com catracas. Jamais se deixava prender e estava quase sempre muito pronta. Mas sabia daqueles que se prendiam e paravam no meio do caminho. Rosa estava sempre ali, disposta a desenroscá -los.

O que a parava no meio do caminho não eram as catracas, e sim a vida. Era nela que Rosa pensava. Em como a retardava os movimentos, em como tantas vezes tinha o dom de transformá -la no que para outras pessoas é morte. Se sentia assim naquele instante, vendo a vida extremamente mórbida por detrás de seu fino rosto cansado. Via essa paralisação nas samambaias na sacada, querendo lhe chamar atenção. " Há quanto tempo não as molho ". Rosa era incrivelmente responsável pela morte e vida daquela casa. De tudo o que havia nela. Era também responsável pela sua? Não sabia dizer. Mas sentia com nitidez a necessidade de depositar essa sua possível responsabilidade em coisas mesquinhas. Dessa forma não se culpava por ser péssima dona de casa. Não se culpava por nada...porque a forma como se via no mundo era tão incontrolável que já nem se via mais... Já nem se habituava, e se parava para pensar, não era em si. Era nas questões existenciais, questões que nada tinham a ver com ela. Perda de tempo. No entanto, se não sentasse, certamente haveria de cair.

Assim passavam suas manhãs secretas, guardadas às sete chaves, como se fossem motivo de vergonha. Como se muito houvesse para ser escondido. É que toda mulher precisa ter seus segredos- ouvira certa vez. E toda mulher precisa ter suas tristezas, imaculadas, inatingíveis. Mais do que isso, toda mulher precisa ter sua própria solidão. Rosa se incomodava com os dilemas, com as censuras e incertezas. Se preocupava em voltar à cena de seu teatro e se da próxima vez conseguiria interpretar. Naquele momento não conseguia. Não segurava máscaras. Mas em tão pouco tempo, seria o susto dos despertadores, forçando-a a retomar sua rotina.

Entretanto, o mais difícil e cruel de repente a perseguia. Agora não olhava os quadros. Parava na vida. Pensava em si. Repousava os olhos em postura cerrada. Era quando olhava quadros com protagonistas mais mortos do que aqueles, vivos à sua frente. Olhava os quadros, pendurados em suas paredes internas. Sentia imenso carinho pelos rostos e concluía que os amava, de fato. Mas os olhos se alagavam, fechados. Rosa chorava lágrimas de culpa, e a mais difícil crueldade assumia para si. Somente porque estava sozinha. "Não sou feliz!".

E por detrás da amada família, dos filhos e marido, da casa e da vida e morte que deveria cuidar sobre os ombros, sozinha, abria os olhos molhados com uma coragem que não sabia onde nascera. Com uma raiva, uma tristeza e uma culpa absurda, olhava para aquela leitera de leite queimado, aquele chão a ser varrido, aquele jardim a ser semeado e cuidado para o bem estar de todos. Menos o seu. Rosa não era feliz. E sentia como se possuísse sim uma felicidade, da qual não era digna. Rosa era rosa simplesmente porque assim a chamaram. Todavia, não tinha cor. Nem soubera, sequer uma vez em sua existência se essa cor a agradara. Mas é delicada como devia ser... Rosa não tinha identidade.

Beatriz Beraldo
Enviado por Beatriz Beraldo em 20/07/2015
Código do texto: T5317788
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