Rufos De Uma Banda
Houve um ínterim de um ano a outro em que a expectativa tomava forma na inocente excitação. E esperava as tardes como promessas de ouro. Este é o doce caldo da imaginação e as adoráveis rendas multicoloridas da fantasia. A qual simples debuxos no papel, tornam-se vivos aspectos para quem enxerga vida no devaneio.
E onde residia, que era um edifícil vulgar, digamos, mas que esprimia certa simpatia; assim, o apartamento tinha uma testada para os fundos, botando os olhos janela abaixo, dava-mos de encontro a um fundo alçapão, que devia ser um pátio ou espaço interno.
O que facilitava bem a minha audição eriçada, era um leve espaço aberto de um edifícil a outro. Assim, passava por horas a espera de poder ouvir o rufar de tambores, as frases de um trompete e o choro de um trombone. E esta sinfonia caracterizava uma simplória e chamativa marcha que desfilava pela Rua da Mooca ao fim daquele mesmo ano.
A divertida passeata descia pela rua principal e subia a Avenida Paes de Barros. Com canções soltadas em Lá e Dó, a compostura da bonita banda era representada por personagens famosíssimas de animações que galantearam a infância e cultivaram com ternura o germe da magia e ingenuidade.
Estes eram os saudosos anos da paz e do amor fraternal. Pareciam brilhar mais pontos a cada rua atravessada. Também a caridade tomava vez na compreensão dos olhos. As boas palavras titilavam os magníficos agouros que vinham com a função de promover sensações momentâneas e esperançosas.
Após estes pequenos parágrafos que serviram de premissa para expor-lhes somente um rastro da infância, devo começar a progressão da narrativa; que como já fora retratada, iniciava-se com o chegar de horário do almoço, e dava em mim de ir puxar o avental de minha mãe, com os olhos sôfregos para seguir as boas fantasias que revelavam-se como sonhos que saíram da tela para o mundo da realidade.
E a pobre da mãe, tinha de largar qualquer tarefa que executava, e lá se punha a seguir minha excitação pueril, que credulamente acreditava que as personagens que contemplava nas animações haviam transfigurado-se na matéria de nosso universo e vinham a retribuir todo o amor que as crianças lhes tinham, com pura gentileza e atenção com que nos recebia.
E não era só um compromisso improvisado de minha mãe, mas de certo muitas vezes encontrávamos com uma loura de feição maltratada e olhos claros, que viera da Bahia, sendo praticamente arrastada pela filha de minha idade; uma guriazinha com os cabelos mais escurecidos e toda afogueada pelos mesmos motivos que eu. A inocência é transmitida pelos olhos quando dois a compartilham.
E tamanha era a ambição com que nós e outras crianças puxavam nossas queridas mães, que já transformara-se num fato comum, pelo fim de horário de almoço e início da tarde, ver-se um desfile de adultas e seus filhos, como se aquela marcha fosse o som do flautista mágico, que encantou as pragas para fora da cidade empesteada.
E tanto se confirma a visão de terceiros, que havia um distante tio, que residia a um assobradado de frente ao edifícil onde residíamos, que chegou à minha mãe e disse-lhe que não se conformava que a mulher em sua posição de mãe e esposa, saía pelas tardes à procura de seguir rastro de bonecos animados.
A sobrinha apenas riu de bom humor, e contudo mostrava bastante fastio com a aventura que era obrigada a adentrar para satisfazer os desejos etéreos e inocentes do coração imaculado de uma criança. Sendo este o pecado mais venial das mães, que é deleitar as crias até o ponto em que se envaideçam.
De certo não me assoberbava, mas sentia tamanho mel no desembaraço que minha mãe tinha de ter para tomar para si toda a minha limitada percepção, que não se auto-limita em deixar a vontade somente pelo que seja possível. Assim, eu, como todas as crianças do último e novo século, não gostava de barreiras para o que viam meus olhos e desejassem por pura volúpia.
E como tinha eu planos para progredir a narrativa, um ponto já alcanço, pois acho que apesar de fraca descrição, já fora impossível incutir na mente do leitor que havia uma marcha de músicos que trazia como atração mascotes de personagens famosas, e junto com a música entoada, também trazia a atenção de crianças do bairro que tinham de vir acompanhadas das mães. Certo, houve um avanço, mas ainda não estamos nos terrenos das morais.
E para começarmos a alcançá-los devemos continuar a seguir e saber que a duração de um final de ano é semelhante ao tempo em que um fósforo não é queimado pelo fogo aceso. Quero dizer que torna-se efêmero, como todas as outras ocasiões especiais.
Aí chegamos ao último dia de desfile. No sentido literal da frase, isto foi um louva-a-deus das demais mães incomodadas. E devido a este final a passeata durou duas horas mais, para totais lamentações dos adultos e maior alvoroço das crianças. E quando a noite já caíra, as boas mascotes levantaram os seus fiéis seguidores ao peito para que um retrato fosse batido.
E eu, aguardava totalmente insofrido para que chegasse meu momento. E chegado este, um famoso personagem na caricatura de um pato, também ergueu-me. Sendo avidamente curioso e também pelo efeito da emoção, coloquei-me a observar a figura com total perspicácia. E a atenção foi a tal ponto que olhava com tamanha facilidade de compreensão que comecei a poder perceber pela diafaneidade dos olhos de plástico.
Pude ver o sujeito que se ocultava por aquele disfarce animado e infantil. E este possuía olhos de escárnio e a expressão do rosto trazia a ideia de total enfado e mau humor que possuía pelo contato estendido com o público mirim.
Confesso que um leve raio de medo se abateu sobre meu jovem espírito e não mais tentei perscrutar sobre o perfil que interpretava a boa fantasia. E assim fora batido o retrato, em seguida estava ao chão e momentos depois já era noite no lar.
Tive de lidar quieto com a insatisfação e perda de paciência de minha mãe, que afirmava não mais ter tempo para tamanho desazo e falta de compromisso, pois muito tinha o que fazer, como o almoço, a varredura da casa, dobrar as roupas e tarefas mais de uma boa dona de lar.
A mim somente restou a interpretação que se aviltava por baixo de uma carapuça sorridente. Assim, chegava à conclusão de que as máscaras são simples eufemismos, mas que nunca caiam o real sentido que sempre possui o mais forte de todos os efeitos.
Dessa forma, as máscaras, que nada mais são do que simples socapas, escondem os atributos que somente influem pela caracterização de uma compleição: sendo as bocas, os narizes e a etnia de uma pele. Todos estes detalhes são substituídos por valores padrões da falsidade. Porém, há peculiaridade que não é coberta: os olhos.
Estes definem o real estado da verdadeira personalidade; como aquele sujeito que estava abaixo do disfarce, e por ele pude perceber que seu olhar denunciava os predicados mais adequados aos reais sentimentos que lhe passavam pela mente naquele instante.
Com os anos da experiência, fora possível que eu conseguisse discernir pela figura quimérica e animada, e pelo seu intérprete latente e com valores capitalistas a seguir. Pois ali não havia a menor importância para o sonho de crianças que se realizavam, somente um trabalho a ser cumprido em troca de uma comissão qualquer; por isso ali houve espaço para o enlevo e a rabugem.
Simples peitas e acordos comerciais. O valor dos direitos autorais. E um público crédulo, que pelo tamanho da candidez da alma, faz por manter em sucesso aqueles que procuram somente os prazeres da matéria.
Pobre da inocência.