REPETE!

REPETE!

Mais que inferno! Sete da manhã e meu carro feito de lousa para a má educação de alguém. Corrigindo: alguém não. Eu sei quem foi o autor da proeza.

Com a cara de quem foi atropelada por um caminhão cegonha ofereci um pão de queijo já que a essa hora não tenho ideia de onde enfiei as minhas moedas. Mas não, era olhar o carro ou nada. Ignorei a resposta malcriada. Acho que deveria ter perguntado se ele passava cartão, pelo menos teria evitado o troco que levei:riscado na minha porta, bonitinho, com uma caligrafia indiscreta:

VACA!

Em frente à padaria, um monte de gente indo trabalhar e o cidadão perde seu precioso tempo estragando a manhã de quem não tinha uma mísera moeda sobrando. É pra ferrar qualquer sexta-feira.

Não posso nem gritar.O rapaz que me serviu diz que não é a primeira vez,mas não há o que fazer. O cara some,volta,apronta. E quem pode que arque com o prejuízo.

Trabalho em uma escola estadual e antes que você pense que algo assim já deve ter acontecido com algum professor por lá sinto te desapontar: nunca, e isso está totalmente relacionado ao motivo de eu ter escolhido a Professora Adélia Lucia na minha convocação: somos lotados de problemas, mas a direção faz toda a diferença e lutamos muito para continuarmos sendo sinônimo de bom ensino. Guardo a raiva e a vergonha no porta-luvas e vou trabalhar já que arranjar um funileiro a essa hora é algo bem impossível.

Os alunos não passam pelo estacionamento então só tenho que lidar com as caras dos colegas tentando adivinhar o que eu fiz para merecer tamanha homenagem. Oferecer um sal de fruta para amenizar minha dor de estômago ninguém pode.

Por aquelas ironias do destino hoje tenho quatro aulas em duas turmas super calmas. E espertas: vários alunos perguntam porque pareço nervosa, e me dizem que estou pálida.Perco a cor quando fico louca da vida com alguma coisa, mas eles não precisam saber.

- Nada não, vamos começar!

Continuar a aula,rir forçadamente, lidar com a queimação me lembrando que minha raiva está longe de acabar. Passo um slide para a turma, eles riem,adoram.E eu egoísta só enxergo letras garrafais embaralhando os tópicos, o layout: VACA! VACA!

Tô enjoada.

Intervalo,iogurte,aveia,fugir do café fraco da sala dos professores e tchau: Joel e seus poderes funileiros me esperam.

Claro que me sinto forçada a explicar o que aconteceu. O pessoal da oficina conhece meu pai há anos e Joel, o dono é nosso primo distante. Conto sobre minha manhã esplendorosa em detalhes e me odeio por ter vontade de chorar.Me consolam com uma xícara de chá e um discurso sobre como não temos mais paz em lugar nenhum. Dez minutos depois, serviço completo( e caro) vou pra casa fechar as notas do bimestre.

Delícia.

Depois de doze anos trabalhando em escolas de idiomas ( dou aulas de Inglês) resolvi arriscar e voltar para a rede pública e não poderia ter tomado uma decisão melhor:aproveito como nunca imaginei essa rotina de cadernetas. grande turmas e o pacote todo. Sou um primor de desorganização, mas me viro, me ajeito, me divirto.

Ah, mais essa!!!

O Eduardo, meu querido e organizado namorado me deu umas pastas de plástico que insisto em não usar por pura teimosia. Ele reclama,me avisa, pega no meu pé. E ainda bem que não tá aqui pra ver minha última besteira : meu squeeze virou e molhou os exercícios de uma sala toda.Não vou contar, não vou reclamar sobre meu dia, meus desastres, o presente deixado na lataria do carro que ralei muito pra comprar.

Burra, desajeitada, má cidadã( quem mandou não ajudar o pobre necessitado?): entro em casa muda, envergonhada, impotente. A ansiedade me tirou a fome, mas como um prato cheio de camarões que minha mãe fritou e colocando a culpa pela preguiça embaixo da cama vou tirar um cochilo. Com a ofensa e a autopiedade entaladas na garganta.

** *

Dormi mais do que esperava. As folhas dos exercícios estão em cima da cama, amassadas, nojentas. Imagino a cara dos alunos quando as receberem. Parabéns professora.

Respondo as mensagens do whatsapp como se meu dia estivesse sendo lindo, incrível. Eduardo vai ao boliche com o pessoal do trabalho, meu irmão e a namorada nova jantarão com a gente amanhã. Preciso ir ao supermercado.

No caminho lembro daqueles conselho sobre economia: jamais pise em um supermercado com fome. Meu estômago ronca( bom sinal) e acho melhor parar para um café na padaria que frequento todo dia, o cenário da minha manhã fabulosa. Preciso de um queijo quente e agora meu camarada riscador de carros não deve estar por lá, ainda são cinco horas.

A rua está vazia: estaciono sem dramas e quinze minutos depois estou de barriga cheia,relaxada e sem pensar em folhas molhadas ou carros riscados. Mas não é a alegria de pobre que dura pouco?

Me vê e com um sorriso cínico cobra por uma olhada no carro que só ele acha que aconteceu. Sinto meus olhos paspalhos se encherem de lágrimas,minhas mãos tremem, a voz falha. Quero gritar, pegá-lo pela camiseta imunda e cuspir na cara dele. O desgraçado não lembra de mim, da sua imbecilidade que me vitimou, me destruiu o humor, o dia.

Covarde, não discuto.Dou o sorriso mais patético e falso que posso e encho suas mãos com moedas de um real. Solícito, se posiciona atrás do carro para me ajudar a tirá-lo da vaga que ficou apertada. Comovente

Pode vir, pode vir: manobro como uma motorista inexperiente e desajeitada, observo suas mãos, passo uma imagem de insegurança. Posso mesmo, tem certeza?

E vou! Dou marcha a ré e escuto um ai,ai,ai.Será que não vi alguém? Será que não quis ver ninguém?

Gritos, tapas na traseira do carro, ouço um sua louca,meu pé. As mãos que me ofenderam continuam intactas, dos pés sinto-lhes informar, não sei e nem quero saber. Talvez meus pneus tenham ficado sujos, mas nada que um pouco de água não resolva( vai ficar mais barato que o Joel, tenho certeza). Sinto a garganta limpa e o estômago parar de doer.

Eu disse que poderia pagar um café.

Débora Consiglio
Enviado por Débora Consiglio em 16/07/2015
Código do texto: T5312997
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