840-A PREOCUPAÇÃO DO SAPATEIRO MILIONÁRIO
— Então, Luquinha, vamos fazer um bolão!
— Não, não vou não. Quando ganhar na loto, quero ganhar sozinho.
Luquinha gostava de apostar, porém não era um perseguidor da sorte, como seus diversos amigos, que faziam a fezinha sistematicamente em todos os jogos da loteca federal. Fazia sua aposta, sim, as quartas e sábados, conferia os resultados e tinha por hábito colar as apostas na porta de sua sapataria.
A mulher, Guilhermina, sensata e sabendo que a sorte dificilmente bateria à porta da sapataria, dizia-lhe, em tom de brincadeira:
— Deixa disso, Luquinha. Se você algum dia ganhar, vai ter problema.
— Ara, mulher, qual é o problema? Quando ganhar, arranco a aposta da porta.
E um dia aconteceu o quase impossível: os números sorteados foram os mesmos do bilhete de Luquinha. Não foi o prêmio principal. Acertou os cinco números e ganhou a quina. Um valor significativo para Luquinha, sapateiro de pouca renda e vida modesta.
— Mina, estamos ricos! — Ele correu à casa, para anunciar à esposa. — Acertei na loto!
— Ara! Luquinha, deixa de besteira. Cê conferiu bem?
— Sim, Mina, acertei na quina!
Para o modesto sapateiro, o prêmio representava, sim, a independência financeira.
— Tamos ricos! Agora num preciso mais trabalhar! Vou me aposentar.
— E cadê a aposta? Num me conta que ainda está colada atrás da porta da sapataria!
— Ainda não descolei, mas conferi e agora vou descolar a aposta e levar na Caixa prá receber.
— Então corre, seu tonto, antes que alguém entra na sapataria e arranque a aposta.
Dando-se conta da idiotice que fizera, deixando a sapataria vazia, Luquinha correu para descolar a aposta.
A cola que usava era a mesma que aplicava nos sapatos, forte e de secagem rápida. Uma espécie de super-bond. Ao chegar à sapataria, Luquinha abriu a porta e olhou para o bilhetinho premiado, colado na madeira.
Tentou tirar, com cuidado, para não estragar a aposta. Mas quem diria! O bilhetinho não saia, e Luquinha viu que era impossível tirá-lo sem danificá-lo.
E agora?
Luquinha, apesar de simples, não era simplório, e logo teve a idéia prática para receber o prêmio:
Arranco a porta das dobradiças e levo prá Caixa, eles vão ter que me pagar!
Assim pensando, assim fez.
Não teve dificuldade, já que a porta era relativamente leve e fácil de ser removida do portal. E em pouco mais de uma hora, eis o Luquinha tentando entrar na agencia da Caixa Econômica Federal com a porta para cobrar o prêmio.
A primeira dificuldade foi com o agente de segurança da agência.
— Mas, que é isso, seu Luquinha? Aonde pensa que vai com essa porta?
De nada adiantou a explicação, o guarda não permitiu, mandou chamar o gerente para resolver.
— O que foi? Perguntou seu Amarilio, o gerente, que veio até o saguão de entrada.
—O seu Luquinha quer entrar com essa porta aí dentro da agência. Diz que tem um bilhete da loteca premiado colado na porta e que não conseguiu descolar. — Explicou o segurança.
Amarilio, homem ponderado (e por isso mesmo ótimo gerente da agência) olhou para o sapateiro e examinou aporta.
— Custumo colar as aposta na porta. — disse o sapateiro. — Esse aí, ó, ta premiado com a quina. Não consegui descolar sem rasgar, por isso, trouxe a porta.
O gerente chamou um funcionário e ambos conferiram a aposta.
— E, tá premiado, sim. Mas a porta não passa na rotatória. — disse o funcionário.
Um grupo de curiosos havia se reunido em torno de Luquinha, a porta, o gerente, o guarda e o funcionário. Do meio das pessoas uma voz disse:
— Serra porta!
Foi a solução. Chamado um marceneiro, a porta foi cortada ao meio no próprio saguão, dela extraído apenas um pequeno pedaço, de mais ou menos vinte por vinte centímetros, justamente aquele em que estava colada a aposta premiada.
Em seguida, já no interior da agência, no ato da abertura da conta para crédito do vultoso prêmio, Luquinha não gostou quando o funcionário lhe disse:
— Vamos lhe debitar o valor pago ao marceneiro que serrou a porta.
De volta à sua sapataria, levando a porta serrada ao meio, e com um buraco quadrado retirado com o bilhete premiado, Luquinha não teve como colocá-la novamente no portal. Apenas encostou, de modo precário e sem trancar.
À noite, quase não dormiu. Revirava na cama sem parar. Guilhermina lhe perguntou:
— Que foi, Luquinha, perdeu o sono?
E o sapateiro milionário respondeu:
— É, tou preocupado com minhas coisas lá na sapataria.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 24 de abril de 2014
Conto # 839 da Série Milistórias
Fato real noticiado no jornal O Tempo, de BH, em setembro de 2011